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Foto: Acervo EBC

Participação dos movimentos sociais foi imprescindível para que Constituição se tornasse cidadã

30 anos Constituição Federal

Para celebrar os 30 anos da Constituição Federal, a CNTS elaborou uma série de reportagens especiais sobre os diversos aspectos da nossa Carta Magna. Até outubro, mês em que se comemora a promulgação da Constituição, serão sete textos publicados no dia cinco de cada mês, abordando o contexto, história, direitos sociais, saúde pública e outros temas correlatos à lei fundamental brasileira.

As publicações calham em um momento em que o atual governo coloca em xeque os princípios sociais basilares como trabalho, Seguridade Social e Saúde, itens que deram à nossa Carta o título de Constituição Cidadã.

Participação dos movimentos sociais na constituinte – As lutas do fim da década de 70 e meados da década de 80 fizeram com que os movimentos sociais chegassem à constituinte em um processo de ascensão. Com o processo de abertura gradual, diminuíram-se os custos de mobilização e multiplicaram-se tanto as reivindicações como as próprias organizações sociais. Embora as poucas vitórias estivessem entrelaçadas a um conjunto de derrotas, a dinâmica geral do período potencializou as mobilizações sociais e contribuiu para que o projeto de institucionalização do regime autoritário fugisse do controle das forças dirigentes.

O processo constituinte de 1987/1988 ficou marcado na trajetória constitucional brasileira pela sua inovadora abertura à ampla participação popular, motivada pelo anseio de redemocratização do país. Como consequência dessa abertura, a elaboração do texto constitucional foi precedida de um debate longo e tecnicamente difícil, mas, ao mesmo tempo, rico e democrático. A sociedade encontrou diversas formas de interferir no processo constituinte. Além dos canais institucionalizados pelo Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte – por meio de sugestões, audiências públicas, emendas populares –, foram criados fóruns de debate e de acompanhamento das atividades da Assembleia Nacional Constituinte – ANC por todo o Brasil.

Suscitar e manter um debate nesses moldes, contudo, representou um desafio para a sociedade brasileira, na qual o autoritarismo desenvolveu raízes profundas e dificultou, com isso, a formação de uma esfera pública autônoma, distanciada do Estado e do mercado.

Esse confronto entre o antigo e o novo, entre a resistência autoritária a mudanças substanciais e o anseio por ruptura com a ordem vigente, refletiu-se no caminho percorrido pelo processo constituinte, muitas vezes inovador, como na implementação de canais de participação direta da sociedade, outras, conservador, como nas manobras do “centrão” para alterar o regimento interno da ANC e, a partir daí, tentar anular as conquistas sociais obtidas nas fases anteriores do processo.

A complexidade do processo permitiu que ele fosse, ainda durante a sua realização, alvo de diversas críticas. Uma delas foi no sentido de que o debate poderia ter se concentrado em temas mais relevantes, e, com isso, ter produzido um texto mais conciso, coerente e avançado. Ocorre que o grande mérito do processo constituinte foi exatamente o de ter aberto o debate, propiciando um exercício de cidadania, mediante a participação de cidadãos não integrantes da ANC nos discursos que resultaram na Constituição de 1988.

Entre 1985 e 1988 os movimentos sociais envolvidos diretamente com a constituinte passaram por inúmeras transformações, seja nas pautas, nos seus repertórios de ações coletivas ou na própria composição.

No dia 1 de fevereiro de 1987, os gramados de Brasília foram ocupados por cerca de 50 mil pessoas. Esperava-se que o novo Congresso que se iniciava, responsável pela árdua tarefa de construir uma nova Constituição, fosse o fim do longo processo de transição democrática. Organizadas principalmente pelas centrais sindicais e pelos movimentos sem-terra, as milhares de pessoas se uniam em torno de um extenso rol de reivindicações: reforma agrária; liberdade e autonomia sindical; salário mínimo real; revogação das leis de exceção – Lei de Greve, de Imprensa e de Segurança Nacional –; democratização dos meios de comunicação; estabilidade de emprego; ensino público e gratuito em todos os níveis; e, entre muitas outras exigências, eleições diretas para Presidente da República.

Embora ainda não se soubesse como, os movimentos sociais e sindicais demonstravam a vontade de participar do processo, de unir as suas forças para defender os seus interesses. Entre 29 de janeiro e 4 de fevereiro, vários foram os esforços para construir laços entre as diferentes organizações e estabelecer uma estrutura básica de articulação e pressão em cima dos constituintes.

De fato, a participação dos movimentos sociais ao longo da constituinte não foi constante e tampouco uniforme. Os obstáculos à mobilização não foram poucos: o palco principal era o inóspito planalto central; a mobilização social após a ditadura militar teve os seus altos e baixos, sem, no entanto, provocar uma ruptura com a ordem institucional; o baixo grau de organização de grande parte dos novos movimentos que surgiam nas periferias das principais cidades em torno da luta pelas condições básicas de sobrevivência; as pautas de reivindicações de grupos temáticos que apenas começavam a atuar como movimentos nacionais ainda não estavam amadurecidas interna e externamente; com isso, a identidade e os quadros interpretativos de muitos movimentos ainda estavam em processo de formação.

Mesmo assim, entre novembro de 1986 e setembro de 1988, foi possível identificar 225 eventos relacionados ao processo constituinte. Ou seja, uma média mensal de 9,78 mobilizações sociais em torno da ANC no período.

O tipo de ação coletiva mais empregado foi as demonstrações públicas (manifestações, comícios, etc.), com 40 eventos diferentes no período (16% do total). Caravanas à Brasília e lobbies de maior ou menor grau nos corredores e no plenário do Congresso Nacional. As demonstrações públicas foram instrumentos fundamentais para que os movimentos exprimissem a sua força e unidade perante os constituintes e a opinião pública, colocando suas reivindicações em discussão na sociedade e no parlamento.

As reuniões entre as organizações sociais e os constituintes eram um importante complemento a estas demonstrações de força e comprometimento dos ativistas. Ao longo da Assembleia Nacional Constituinte, 35 reuniões (14% do total) receberam publicidade na imprensa e nos relatos dos ativistas. Estima-se que a quantidade de reuniões dos movimentos com os constituintes tenha sido ainda maior, mas estas reuniões tornadas públicas foram, em sua grande maioria, reuniões importantes com parlamentares que desempenhavam papéis centrais no processo Constituinte – como, por exemplo, o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, o relator da Comissão de Sistematização, Bernardo Cabral, os líderes partidários, etc.

Lobby do batom – A campanha “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher!”, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, para levar as reivindicações do movimento social à Assembleia Nacional Constituinte envolveu mecanismos de articulação e comunicação com segmentos organizados em todos os estados e na capital federal. Lideranças, das mais diversas, puderam contribuir para a elaboração da Carta das Mulheres Brasileiras entregue, em março de 1987, nas mãos do presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, e dos presidentes das Assembleias Legislativas nos estados da federação.

Foto: Acervo EBC

Seguiu-se um trabalho de articulação cotidiana para incidir nos debates legislativos. Foi o chamado Lobby do Batom, coordenado pelo CNDM mas contando, a cada passo, com a participação de grupos e organizações por todo o país. O movimento de mulheres foi uma experiência singular de parceria entre o Estado e o movimento social, cujo saldo foi de 80% das reivindicações aprovadas.

As mulheres conquistaram, na Constituinte de 1988, a igualdade jurídica entre homens e mulheres, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio da não discriminação por sexo e raça-etnia, a proibição da discriminação no mercado de trabalho e o estabelecimento de direitos no campo da anticoncepção. Ficaram de fora, por enfrentar resistências mais duras, demandas do campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em particular o aborto.

Movimentos de minorias na ANC

Negros: No auge das discussões acerca dos direitos de setores antes suprimidos dos debates, a Assembleia Nacional Constituinte criou a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias como forma de atender as reivindicações destes segmentos. Foi eleito presidente da Subcomissão o deputado Ivo Lech (PMDB-RS), que, na abertura dos trabalhos do grupo na ANC, afirmou que o grande desafio seria o resgate da dívida social que o Brasil possui não somente para com as pessoas com deficiência, mas também para com os negros, indígenas e demais minorias. Afirmou ainda que “a Subcomissão trabalhará não com o intuito de segregar tais grupos em um capítulo à parte do texto constitucional, mas sim de garantir seus direitos em cada capítulo da Carta”.

Foto: Acervo Movimento Negro Unificado

Naquele momento os negros (pretos e pardos) representavam aproximadamente 46% do contingente populacional pátrio, entretanto foram eleitos apenas 11 representantes negros de um total de 559 membros, ou seja, 2% dos constituintes.

Neste contexto, é importante ressaltar que, não fosse a presença e pressão militante desses atores minoritários antes invisibilizados, provavelmente a Constituição seria ainda mais tímida na proteção dos direitos e na promoção de políticas para os setores excluídos historicamente da construção do Estado Brasileiro, uma vez que a ANC representou antes de tudo uma composição de interesses das diversas classes e de setores político-partidários conservadores, incluindo até mesmo constituintes que haviam apoiado a ditadura militar.

Homossexuais: No palco da Assembleia Nacional Constituinte o único representante do Movimento Homossexual Brasileiro – MHB a discursar foi João Antônio de Souza Mascarenhas, na época Diretor de Comunicação e principal dirigente do grupo carioca Triângulo Rosa. Sob o título “O homossexual e a Constituição”, a fala do representante do MHB ocorreu numa sessão em que antes tiveram voz outros cinco debatedores que trataram da questão indígena. Logo no início João Antônio já deixa clara a única reivindicação de caráter constitucional do segmento que representa: “a expressa proibição de discriminação por orientação sexual”.

O termo “homossexual” e seus correlatos – “homossexualismo”, “homossexualidade” e os seus plurais – são citados cerca de 170 vezes nas atas desta Subcomissão e, como os trechos indicam, na maioria das vezes, nas falas de quem não queria ver o assunto discutido e associado a outras características alvo de preconceito – como a negritude. Isto quando não eram assinaladas como pautas que atentavam contra “a moral e os bons costumes”.

Apesar do empenho, o MHB não teve êxito na maioria de suas reivindicações naquele momento. Ou melhor, o resultado logrado não foi o esperado, mas a guerra não estava perdida. As discussões na constituinte serviram para unir o movimento e construir pontes com outros grupos. Essa união não necessariamente é de ação, mas de pautas. Além disso, os debates que se seguiram ao final da ANC serviram para alargar a visão de mundo do próprio movimento, que passou a abarcar outras identidades, como as travestis e outras que viriam a ganhar terreno a partir dos anos 1990.

Indígenas: As propostas sobre os direitos indígenas foram construídas basicamente pela UNI – União das Nações Indígenas, com o apoio da ABA – Associação Brasileira de Antropologia, Conage – Coordenação Nacional dos Geólogos, SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Cimi – Conselho Indigenista Missionário, Cedi – Centro Ecumênico de Documentação e Informação e mais 11 organizações de apoio aos índios nos debates da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Deficientes e Minorias.

Foto: Instituto Socioambiental

A reação inicial dos partidos políticos, segundo relatos do deputado constituinte Carlos Saboia (PMDB-MA), foi de descrédito e um certo desdém debochado sobre o fato de uma Comissão perder tempo com temáticas consideradas pouco importantes frente às lutas dos trabalhadores e cidadãos contra a desordem ditatorial. “A presença permanente dos índios e suas lideranças no debate constitucional tornou-se um incômodo “civilizatório” para todas as correntes e grupos políticos comprometidos com o extermínio dos índios e a expropriação de suas terras. O espaço que dava acesso ao gabinete do senador Mário Covas foi durante muitos dias ocupado por mais de uma centena de índios numa verdadeira pajelança, ritualizados nas vestimentas, adereços e pinturas corporais, que com cantos e danças saudavam e também “atemorizavam” as lideranças constituintes em negociações de suas propostas”.

Como resultado, os índios tiveram um capítulo exclusivo na Constituição Cidadã. Foram garantidos basicamente o direito às terras por eles ocupadas, não sendo permitido a alienação destas e nem tampouco a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população.

Pessoas com Deficiência: Até a criação da Assembleia Constituinte, a única referência aos direitos das pessoas com deficiência era a Emenda n° 12, de 1978, conhecida como “Emenda Thales Ramalho”, que no seu artigo único define: “É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante: I. Educação especial e gratuita; II. Assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; III. Proibição de discriminação, inclusive quanto a admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários; IV. Possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

A articulação do movimento das pessoas com deficiência para participar da ANC ocorreu por meio do ciclo de encontros “A Constituinte e os Portadores de Deficiência”, realizado em várias capitais brasileiras pelo Ministério da Cultura entre 1986 e 1987.

Uma das principais reivindicações das pessoas com deficiência discutida nos encontros era que o texto constitucional não consolidasse a tutela, e, sim, a autonomia. Nesse sentido, o movimento não concordava com o anteprojeto de Constituição, elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que tinha um capítulo intitulado “Tutelas Especiais”, específico para as pessoas com deficiência e com necessidades de tutelas especiais. O movimento não queria as tutelas especiais, mas, sim, direitos iguais garantidos juntamente com os de todas as pessoas. A separação, na visão do movimento, era discriminatória.

Desde o início da década de 1980, a principal demanda do movimento era a igualdade de direitos, e, nesse sentido, reivindicavam que os dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência deveriam integrar os capítulos dirigidos a todos os cidadãos. O movimento vislumbrava, portanto, que o tema deficiência fosse transversal no texto constitucional.

Após a fase de sistematização do texto da Constituição a ser votado em plenário, as propostas do movimento das pessoas com deficiência não foram incorporadas da forma esperada. Em decorrência disso, o movimento preparou um projeto de Emenda Popular e iniciou campanhas em todo o Brasil para recolher as 30 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à ANC.

A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC e continha 14 artigos sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde coubessem temas como igualdade de direitos, discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação, direito à informação, educação básica e profissionalizante. Essas demandas foram atendidas quase que na sua totalidade pelo texto constitucional final, que garante, entre outras coisas, a adaptação dos locais públicos a pessoas com deficiência, atendimento educacional especializado, a habilitação e reabilitação, a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência, percentual obrigatório em cargos e empregos públicos e proteção e integração social.

(Fonte: artigo “O processo constituinte de 1987/1988 e a participação da sociedade na elaboração do texto constitucional” de Mariana Lucena, dissertação de mestrado “Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988” de Lucas Coelho Brandão, dissertação de mestrado “O movimento homossexual brasileiro na constituinte de 87-88” de Eduardo Martins de Azevedo, artigo “A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacional constituinte (1987/1988)” de Natália Neris Da Silva Santos, artigo “Movimento negro e a luta por direitos: a participação na ANC e as conquistas na Constituição Federal brasileira” de Mariana Trotta Dallalana, Instituto Socioambiental, Portal Bengala Legal e Portal Cfemea)

4 opiniões sobre “Participação dos movimentos sociais foi imprescindível para que Constituição se tornasse cidadã

  • Josenildes Santos de Jesus

    Muito bom essa lembrança de como aconteceram as conquistas a nossa Constituição de 88.

  • RAFAEL BOCKORNI GAMIS

    EXCELENTE ARTIGO, BEM INFORMATIVO E ESCLARECEDOR SOBRE O PROCESSO HISTÓRICO DA CONQUISTA DE DIREITOS EM NOSSA SOCIEDADE. UMA GRANDE QUESTÃO É COMO DESPOLITIZAR OS DEBATES E GARANTIR UMA EFETIVA PARTICIPAÇÃO POPULAR AUTÔNOMA NAS GRANDES DEMANDAS NACIONAIS MOTIVANDO AS ATUAIS GERAÇÕES A ESTA PARTICIPAÇÃO. VOU USAR O ARTIGO EM AULA DE SOCIOLOGIA COM MEUS ALUNOS. OBRIGADO, BOM TRABALHO!

  • Gessica

    Olá… Excelente trabalho….
    Mas poderia me listar os nomes só dos movimentos sociais que que contribuíram com a luta pela Constituição de 1988?

  • Gessica

    Excelente trabalho… Mas poderia lista os nomes dos movimentos sociais que contribuirão com a criação da constituição de 1988?

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