MPF: Ministério da Saúde esperou agravamento da crise no Amazonas para iniciar transferência de pacientes
Saúde
Documentos mostram que, no dia 12 de janeiro, a pasta já sabia que seria preciso fazer as transferências, mas o Ministério só iniciou a elaboração de um plano de evacuação após doentes morrerem por asfixia pela falta de oxigênio hospitalar. MPF move ação de improbidade contra Eduardo Pazuello e três secretários da Saúde, acusados de omissão na crise do coronavírus no Amazonas.
O inquérito conduzido pelo Ministério Público Federal – MPF no Amazonas sobre o caos no sistema de saúde em janeiro deste ano mostra que o Ministério da Saúde e o governo do estado sabiam da necessidade de transferir pacientes graves por conta do recrudescimento da pandemia de Covid-19, mas optaram por esperar o agravamento da crise para começar a transferir pacientes para outros estados. Documentos mostram que, no dia 12 de janeiro, a pasta já sabia que seria preciso fazer as movimentações, mas o Ministério só iniciou a elaboração de um plano de evacuação após doentes morrerem por asfixia pela falta de oxigênio hospitalar.
A constatação de que o Ministério da Saúde e o governo do Amazonas esperaram pela piora da crise no Amazonas está em documentos da investigação conduzida pelo MPF, que resultou em uma ação por improbidade administrativa contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e outras cinco pessoas, entre elas o secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campelo. Eles são acusados de omissão ao terem retardado o início de ações que poderiam ter debelado a crise no sistema de saúde do Amazonas no início do ano.
Os documentos mostram que, entre os dias 5 de 8 de janeiro, os dados epidemiológicos do Amazonas já indicavam que havia filas de espera por leitos clínicos e de UTI para pacientes com Covid-19. Desde dezembro, o número de novos casos e hospitalizações pela doença vinha crescendo de forma acelerada.
Em reunião realizada no dia 12 de janeiro, entre representantes do governo do Amazonas e da Força Nacional de Saúde – FNS, a necessidade de transferência foi mencionada. Naquele momento, havia pelo menos 66 pacientes na fila de espera por um leito.
A ata da reunião indica que já havia conversas com uma empresa de transporte aéreo que havia dado sinal positivo para transferir os pacientes para Goiás, mas que a decisão de fazê-lo era do estado do Amazonas. Ao final da reunião, a deliberação feita por agentes do Amazonas e do governo federal é de que a transferência só seria feita em situação “extremamente crítica”. “Essa decisão só será tomada em situação extremamente crítica”, diz um trecho da ata.
Naquele mesmo dia, 166 pessoas haviam morrido pela Covid-19 no Estado. Em uma reunião no dia seguinte ao relatório que mostrava a necessidade de transferência, já era indicada a possibilidade de colapso na madrugada do dia 14 de janeiro. A ata da FNS apontava inclusive o horário limite para fornecimento de oxigênio nas unidades: “A partir de 2 ou 3 horas da manhã vai faltar O² em algumas unidades hospitalares”, diz o documento.
O grupo citava ainda a necessidade de buscar dois estados além de Goiás para receber 300 pacientes do Amazonas. No dia 14 de janeiro, dois dias após a identificação da necessidade de transporte, pacientes começaram a morrer por falta de oxigênio hospitalar em unidades de saúde do Amazonas. No dia seguinte, o governo federal anunciou um plano de evacuação dos pacientes em aeronaves da Força Aérea Brasileira – FAB. O governo do Amazonas também iniciou as transferências em aviões fretados. Pacientes oriundos do Amazonas foram transferidos para diversos estados do Brasil no auge da crise, entre eles Goiás, Maranhão e para o Distrito Federal.
Além da ata da reunião, o MPF afirma que, em depoimento, uma servidora da FNS, Paula Eliazar, teria informado que o planejamento do Ministério da Saúde para a evacuação dos doentes só começou após o dia 14.
“Conforme (Paula Eliazar) expôs, o planejamento para a evacuação ocorreu apenas após o colapso, já no dia 14 de janeiro, ao mesmo tempo em que se iniciavam propriamente as ações para a transferência. […] Essa simultaneidade apenas evidencia a omissão dos gestores citados em tomar as providências com a urgência que se fazia necessária”, diz trecho da ação por improbidade movida pelo MPF.
Pazuello processado – O MPF no Amazonas apresentou na Justiça Federal uma ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército, e contra três secretários que continuam na pasta, na gestão do ministro Marcelo Queiroga. A ação aponta que uma série de omissões do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e a lentidão de resposta da pasta ao avanço da Covid no Amazonas contribuíram para o colapso hospitalar em Manaus, no início deste ano.
Além de Pazuello, demitido do cargo de ministro da Saúde em 14 de março, a ação de improbidade tem como investigados Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Luiz Otávio Franco Duarte, secretário de Atenção Especializada à Saúde, e Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde.
A ação de improbidade também abrange o secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêlo, e o coordenador do comitê de crise no Estado, Francisco Máximo Filho.
Atos de improbidade – O Ministério Público identificou atos de improbidade administrativa em cinco situações, entre as quais o atraso e a lentidão do Ministério da Saúde para enviar equipes de contenção da crise ao Amazonas, bem como omissão no monitoramento da demanda de oxigênio hospitalar e na adoção de medidas eficazes para evitar o desabastecimento do gás nos hospitais.
Os procuradores também apontam como atos de improbidade a pressão das autoridades pelo uso de um “tratamento precoce” contra o coronavírus no estado, mesmo sem comprovação científica, e a ausência de medidas para estimular o isolamento social. Por fim, a ação afirma que houve demora na adoção de medidas para transferir os pacientes necessitados para outros estados.
“O que se viu foi uma série de ações e omissões ilícitas que, somadas, violaram esses deveres [de pôr em prática planos de contingência] e contribuíram para o descontrole da gestão da pandemia no Amazonas, com o colapso do fornecimento de oxigênio e decorrente óbito por asfixia de pacientes internados”, afirma um trecho do processo.
Falta de oxigênio e tratamento precoce – Em relação à escassez de oxigênio medicinal, o MPF destaca que o Ministério da Saúde e a Secretária da Saúde do Amazonas “atuaram sabidamente às cegas, ao não dimensionar o problema, sem perspectiva do volume a ser suprido”.
Segundo os procuradores, mesmo cientes da iminente crise de desabastecimento, as autoridades só agiram após o colapso. “Tardaram em contatar os possíveis fornecedores, em requisitar microusinas e em buscar possível ajuda externa. Ou seja, houve grave falha de governança que envolveu a cúpula dos dois órgãos”.
Sobre o “tratamento precoce”, a ação afirma que Pazuello e os secretários pressionaram pelo uso da cloroquina em pacientes durante uma visita a Manaus em janeiro deste ano. O medicamento se comprovou ineficaz contra a Covid-19 e, ainda assim, vem sendo promovido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.
“Como se vê, sem formação médica, o ex-ministro, em pronunciamento amplamente divulgado, defendeu conduta médica reiteradamente questionada pela ciência como se fosse consensual, expôs visão confusa sobre a utilidade dos exames médicos, defendeu o uso de medicamentos com eficácia duvidosa independentemente dos exames e menosprezou os efeitos adversos possivelmente decorrentes dos remédios”, diz o Ministério Público.
Durante a crise de saúde em Manaus, o Ministério da Saúde distribuiu na região 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina e 335 mil cápsulas de Tamiflu, um antigripal, ambos sem eficácia para Covid-19.
TCU também acusa Pazuello – Ministros do Tribunal de Contas da União – TCU sinalizaram na quarta-feira, 14, que devem punir o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e seus auxiliares por omissões na gestão da pandemia da covid-19. Relator da ação sobre a conduta do Ministério da Saúde durante a crise sanitária, o ministro Benjamin Zymler disse que a pasta evitou assumir a liderança do combate ao novo coronavírus no país.
Segundo o relator, uma das ações da gestão de Pazuello foi mudar o plano de contingência do órgão na pandemia, com a finalidade de retirar responsabilidades do governo federal sobre o gerenciamento de estoques de medicamentos, insumos e testes. “Em vez de expandir as ações para a assunção da centralidade da assistência farmacêutica e garantia de insumos necessários, o ministério excluiu, por meio de regulamento, as suas responsabilidades”, afirmou Zymler.
Antes de deixar o posto, o então ministro da Saúde já era investigado em um inquérito no Supremo Tribunal Federal – STF por sua responsabilidade no colapso da saúde pública em Manaus. O caso acabou passando para a primeira instância depois de Pazuello perder o foro privilegiado com a sua saída do cargo.