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Governo federal gasta quase R$ 90 milhões em remédios ineficazes, mas ainda não pagou por vacinas

Saúde

Medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, como cloroquina, azitromicina e Tamiflu estão pagos pelo governo Bolsonaro, ao contrário dos imunizantes já entregues pelo Instituto Butantan.

O governo do presidente Jair Bolsonaro já gastou quase R$ 90 milhões com a compra de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19, como cloroquina, azitromicina e o Tamiflu. Ao mesmo tempo, ainda não pagou o Instituto Butantan, que entregou as primeiras doses de vacinas aplicadas no Brasil.

Desde o início da pandemia, tanto o presidente da República quanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello defenderam o chamado “tratamento precoce” para a Covid-19 – ou seja, o uso de medicamentos como os citados acima nas fases iniciais da doença. Os medicamentos, no entanto, se mostraram ineficazes em diversos estudos rigorosos realizados ao redor do mundo.

Até agora, os gastos da União com cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida somam pelo menos R$ 89.597.985,50, segundo levantou a reportagem da BBC News Brasil por meio de fontes públicas.

Algumas das drogas, como o antiparasitário nitazoxanida, pareceram funcionar contra o vírus em testes in vitro, ou seja, em laboratório. Mais tarde, porém, novos estudos mostraram que as drogas não funcionam em seres humanos. O mesmo aconteceu com a cloroquina: após testes iniciais, a Organização Mundial de Saúde – OMS interrompeu a pesquisa com o produto em meados de 2020, depois que ela se mostrou ineficaz.

Apesar disso, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército comprou uma tonelada do ingrediente farmacêutico ativo – IFA para a produção de cloroquina, em maio de 2020, por pouco mais de R$ 1,3 milhão.

Naquele mês, o Ministério da Saúde lançou um protocolo para atendimento da covid-19 que recomendava o uso da cloroquina associada à azitromicina, aos primeiros sintomas da doença.

Além dos medicamentos, o governo federal também investiu em vacinas contra o SARS-CoV-2. A aposta inicial do governo foi na chamada “vacina de Oxford”, desenvolvida pela farmacêutica britânica AstraZeneca. A União também aderiu ao consórcio coordenado pelo OMS para a compra de imunizantes, chamado de Covax Facility.

Em dezembro de 2020, o Ministério da Saúde assinou um convênio com o Instituto Butantan, que é ligado ao governo do Estado de São Paulo, para investir na “aquisição dos equipamentos para o centro de produção multipropósito de vacinas” – o valor era de R$ 63,2 milhões, que, no entanto, ainda não foram pagos.

Além disso, o governo federal também comprará as doses da CoronaVac produzidas pelo Butantan. Novamente, porém, o pagamento ainda não foi feito. Em nota à BBC News Brasil no começo da semana, o Ministério da Saúde informou que pagará ao Butantan depois que as 100 milhões de doses da vacina contratadas forem entregues.

No domingo, 17, Pazuello disse que o Ministério da Saúde fez “o desenvolvimento do parque fabril do Butantan para fazer a vacina”. “Fizemos um contrato de convênio de mais de R$ 80 milhões. Isso em outubro. Você sabia disso? Pois é”, reclamou o ministro na entrevista aos jornalistas. A declaração é imprecisa, pois o investimento ainda não foi feito.

Ao longo de 2020, o governo federal pagou R$ 733.707.652,36 ao Instituto Butantan – mas o dinheiro foi para a compra de vacinas para outras doenças, e não faz parte da ação orçamentária criada para gastos relacionados à pandemia. A cifra foi levantada pela BBC News Brasil usando a ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal.

Tratamento precoce não funciona – Nos pareceres e votos que embasaram a aprovação do uso emergencial das vacinas Coronavac e de Oxford, os servidores e diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, refutaram a existência de tratamento precoce contra a covid – defendida pelo Ministério da Saúde e por Bolsonaro com base em medicamentos comprovadamente ineficazes.

Antes mesmo do início dos votos dos cinco diretores da Anvisa, a Gerência-geral de Medicamentos da agência argumentou que a recomendação pela aprovação dos imunizantes se justificava, entre outras razões, pela ausência de tratamentos efetivos contra a Covid.

A diretora relatora dos processos, Meiruze Freitas, também ressaltou esse ponto em seu voto. “Até o momento, não contamos com alternativa terapêutica aprovada e disponível para prevenir ou tratar a doença causada pelo novo coronavírus”, declarou ela.

O médico infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia – SBI, Renato Grinbaum, reitera que o “tratamento precoce” não tem eficácia comprovada e não deve ser adotado. “Os estudos não mostram qualquer benefício, e nós observamos que, na prática, há muitos pacientes internados depois de se automedicarem com este chamado tratamento precoce, que deveria evitar essas internações. Então nós vemos, muito claramente, que este tratamento não funciona”, diz o médico.

“Se fosse assim, em Manaus (AM) nós não estaríamos com este problema, porque muitas pessoas usam, e continuam precisando de internação da mesma forma”, diz Grinbaum. O sistema de saúde colapsou na capital amazonense no começo de 2021.

“As autoridades deveriam direcionar seus gastos para três coisas. A primeira é aparelhar os hospitais, para evitar as cenas de caos que a gente viu. A segunda coisa é a vacina, que ela é realmente eficaz. E a terceira coisa são as ações educativas e de supervisão, para a prevenção da Covid-19. Supervisionar bares que estão abertos, fechar festas clandestinas, tudo isto é gasto público”, diz o especialista.

Como o governo federal gastou o dinheiro – Até o momento, as compras da União de medicamentos para o “tratamento precoce” da Covid-19 somam ao menos R$ 89.597.985,50, segundo levantou a BBC News Brasil. Este é o valor despendido com a compra de Tamiflu, azitromicina, ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina e nitazoxanida.

De todos os medicamentos, o maior gasto foi com o fosfato de oseltamivir – que é comercializado sob o nome de Tamiflu. O governo federal gastou ao menos R$ 85.974.256,00 com o medicamento em 2020, segundo dados do próprio ministério. A maior compra foi feita ao laboratório Roche, dono da marca Tamiflu, por R$ 26,6 milhões em 20 de maio passado – também com dispensa de licitação.

No mesmo dia 20 de maio, o Ministério da Saúde divulgou documento no qual recomendava o uso do Tamiflu nos estágios iniciais da doença, especialmente para pessoas no grupo de risco da Covid-19. A orientação era começar o tratamento até 48h depois do início dos sintomas.

Com a cloroquina, a União contratou a compra de ao menos R$ 1.462.561,50. Deste total, R$ 940.961,50 foram desembolsados até o fim de 2020. No caso do governo federal, foram duas compras principais, feitas pelo Comando do Exército por meio do Laboratório Químico Farmacêutico da força. As duas aquisições, de R$ 652 mil cada, foram feitas com dispensa de licitação nos dias 06 de maio e 20 de maio do ano passado.

As duas compras foram arrematadas por empresas que possuem nomes bastante parecidos: “Sul de Minas Ingredientes LTDA” e “Sulminas Suplementos e Nutrição LTDA”. Ambas estão sediadas na pequena cidade de Campanha (MG) e pertencem ao mesmo dono, Marcelo Luis Mazzaro.

Ao todo, a União adquiriu uma tonelada do chamado insumo farmacêutico ativo usado na produção da cloroquina. E os gastos totais são ainda maiores, pois além da matéria prima, também foram adquiridos alumínio para as cartelas do medicamento e outros insumos.

Além destes dois contratos principais, há outras 11 notas de empenho do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército para compras menores de cloroquina com as empresas de Mazzaro. A princípio, não há qualquer irregularidade nestas compras.

Com o antibiótico azitromicina, o governo federal gastou outros R$ 1.994.884,40. A maior compra foi feita pelo próprio Ministério da Saúde – R$ 1,1 milhão.

A segunda maior aquisição, de R$ 165,6 mil, foi feita pelo Hospital das Forças Armadas – HFA, em Brasília, onde o presidente da República costuma cuidar da própria saúde. O HFA também foi onde Eduardo Pazuello se internou no fim de 2019, depois de contrair a Covid-19.

A hidroxicloroquina é uma versão mais recente da cloroquina. É considerada também mais segura, com menos efeitos colaterais – embora seja ligeiramente mais cara. De qualquer forma, a droga não foi priorizada pelo governo federal, que gastou apenas R$ 42,6 mil para adquiri-la. A maior compra (R$38,9 mil) foi feita pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – Ebserh, uma empresa pública ligada ao Ministério da Educação e que administra alguns dos principais hospitais universitários brasileiros.

Depois da hidroxicloroquina, o medicamento com o menor desembolso foi o vermífugo ivermectina. O governo federal desembolsou R$ 121.434,26 pelo remédio em 2020, sendo que a maior compra foi para o distrito sanitário especial indígena do Xingu, no Mato Grosso, por R$ 29,3 mil. A nota de empenho deixa claro que a compra é para “enfrentamento de sinais e sintomas da Covid-19 e também síndromes gripais” – uma finalidade que não consta na bula do medicamento.

Os gastos da União com o antiparasitário nitazoxanida, vendido sob o nome comercial de Annita, não foram significativos até o momento – apesar da droga ter sido divulgada em evento no Palácio do Planalto e propagandeada pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, o governo federal não distribuiu o fármaco. Só R$ 2.250,00 foram usados na compra do medicamento, feita por um batalhão do Exército em Goiás.

As informações acima foram levantadas pela reportagem da BBC News Brasil usando diferentes fontes oficiais: Painel de Compras Covid-19 desenvolvido pela Secretaria Especial de Desburocratização do Ministério da Economia; o painel “Covid-19 Medicamentos”, do Ministério da Saúde; o Portal da Transparência e a ferramenta Siga Brasil.

Fonte: BBC Brasil

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