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Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília

Como o coronavírus sobrecarrega os profissionais da saúde

Saúde

Falta de mão de obra, testes e equipamentos de proteção individual comprometem a capacidade de médicos e profissionais da enfermagem e reduz equipes de combate à doença

Pela rápida capacidade de transmissão, a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, põe em alto risco os trabalhadores da área de saúde, que estão na linha de frente do combate à pandemia.

Na Espanha, mais de 12 mil profissionais da área já foram contaminados até terça-feira, 31, o que correspondia a 14% de todos os infectados do país na mesma data. Na Itália, o número de médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde com a doença passavam dos 6.400 até a última segunda-feira, 30, dos quais mais de 50 haviam morrido. Há até casos de funcionários que cometeram suicídio preocupados em ter infectado outras pessoas.

No Brasil, só nos hospitais Sírio-Libanês e Israelita Albert Einstein, na cidade de São Paulo, a mais afetada pela pandemia no país, mais de 450 trabalhadores da área haviam sido afastados por contaminação ou suspeita até o fim do mês passado. O Hospital das Clínicas, da rede pública da capital paulista, havia mais de 100 profissionais da saúde confirmados com a Covid-19.

Já no Rio de Janeiro, os próprios profissionais começaram a contabilizar os casos. Segundo o Sindicato dos Enfermeiros do estado, 80 deles estavam em quarentena até dia 27 de março.

De acordo com Victor Grabois, presidente da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente – Sobrasp, um trabalhador da saúde pode infectar até nove pessoas. Número bem maior do que é esperado de um indivíduo comum contaminado: duas a três.

Problemas enfrentados – Os profissionais da saúde têm que enfrentar uma série de pressões que os deixam vulneráveis. A seguir, o jornal Nexo elencou algumas delas.

Falta de equipamentos de proteção – “Os profissionais estão angustiados, higienizando as salas por sua própria conta, levando álcool em gel e até sabão de casa”, disse um médico pernambucano à Agência Pública que preferiu não se identificar. Essa é uma situação que se repete em diversos hospitais do mundo, e é especialmente grave com relação às EPIs, os equipamentos básicos de proteção individual.

São eles: luvas, gorros, óculos, escudos faciais e álcool em gel 70%. Alguns como máscaras e capotes impermeáveis – nome técnico para o avental médico –, estão criticamente em falta até mesmo em hospitais de referência. Profissionais se veem obrigados a comprá-los do próprio bolso ou mesmo confeccionar materiais rústicos para se protegerem.

95% das 826 instituições públicas e particulares de saúde consultadas pela Associação Médica Brasileira – AMB no estado de São Paulo até dia 31 de março estavam com falta de equipamentos de proteção.

Há denúncias de que diretores de hospitais estariam relativizando as recomendações da OMS – Organização Mundial da Saúd para justificar a falta de equipamentos, chamando-as de “exageradas”.

A OMS descreve em uma tabela quais equipamentos devem ser utilizados por profissionais da saúde, da higiene e limpeza e até visitantes dependendo do tipo de interação com um infectado ou suspeito. Da ambulância às áreas administrativas, a organização estipula da distância a ser mantida do paciente ao modelo de máscara a ser escolhido.

Recomenda, por exemplo, que médicos e enfermeiros que lidam diretamente com infectados usem modelos que vedem melhor nariz e boca, barrando partículas mais finas que ficam suspensas no ar: o N95 e FFP2, ambos em falta.

A realidade é que muitos recebem apenas máscaras cirúrgicas, que bloqueiam gotículas maiores, originárias de tosses e espirros. Esses modelos valem por até duas horas, mas alguns profissionais são obrigados a usar uma única máscara por plantões de 12 horas; outros sorteiam quem poderá usá-las, quando não abrem mão em prol dos médicos.

Essa escassez de equipamentos de proteção é especialmente arriscada quando médicos realizam procedimentos de entubamento, para garantir que pacientes em estado mais crítico recebam oxigênio. Alguns, mesmo sem máscara, se expõem, mas nem todos querem ser mártires.

Situações que comprometem a saúde individual do profissional provocam baixas nas equipes médicas e podem espalhar o vírus a outros pacientes que entraram no hospital sem a Covid-19.

Segundo profissionais da saúde que conversaram com a Agência Pública, um mesmo capote é usado para atender duas pessoas na sala de emergência. Se a primeira estiver com o vírus, a que for atendida depois acaba contraindo por tabela. Para eles, basta comparar fotos de enfermeiros brasileiros, apenas com touca e máscara cirúrgica, com as de outros países, com o rosto quase todo coberto, para entender a falta de proteção.

Quanto à disponibilidade de equipamentos de proteção, documento da OMS afirmou que o número atual no mundo é insuficiente para máscaras e, no futuro, será também para capotes e óculos. De acordo com a organização, além da crescente demanda global por conta do coronavírus, há também “desinformação, compras motivadas por pânico e armazenamento [que] resultará em mais escassez de equipamentos básicos de proteção individual pelo mundo”.

A Falta de profissionais – A OMS recomenda a proporção de um médico para cada mil habitantes. Em condições normais, a maior parte dos estados brasileiros cumpre com essa meta. Só Maranhão e Pará ficam abaixo.

Nem todos estarão trabalhando contra o coronavírus. As demais doenças continuam acometendo a população e parte dessa força de trabalho tem suas próprias áreas de atuação.

Considerando ainda as baixas nas equipes de saúde causadas pela infecção da Covid-19, a proporção de médicos no combate ao vírus será certamente menor.

Das 27 unidades federativas, incluindo o Distrito Federal, 19 delas têm uma média menor do que dois médicos por mil habitantes. Todos os 16 estados das regiões Norte e Nordeste do Brasil se encontram nessa situação.

No Amapá e Roraima, por exemplo, em cada um deles, há menos de cinco médicos intensivistas. É essa categoria que faz acompanhamento intensivo e monitorado de pacientes em estado crítico, como os internados pelo coronavírus.

O mesmo vale para a área de enfermagem. Ainda que a oferta de profissionais seja maior, muitos hospitais contratam menos do que o Conselho Federal de Enfermagem estipula. Em São Paulo, região com maior número de profissionais, fiscalizações de 2020 em três hospitais encontraram um déficit de mais de 1.300 enfermeiros e técnicos de enfermagem.

Demora dos testes – A recomendação do Ministério da Saúde é de que apenas grupos restritos podem fazer o teste para a Covid-19: profissionais da saúde ou de segurança, e pessoas em estado grave ou que tenham morrido com suspeita da doença. Na rede privada, a resposta pode sair em algumas horas, mas no sistema público, ela pode levar até dez dias.

Como o vírus leva em média de cinco a seis dias para se manifestar, dos 14 dias em que ele fica no corpo humano, a pessoa pode já estar curada, ou morta, quando receber o diagnóstico.

Até dia 1º de abril, 201 pessoas que fizeram o teste para coronavírus em São Paulo morreram sem ter o resultado. Nem todas deverão testar positivo, mas o quadro ilustra a demora para análise dos testes. Isso quando não faltam testes.

Na demora ou na falta, qualquer profissional da saúde que apresentar sintomas da Covid-19 é afastado. O problema é que, sem a confirmação, o servidor pode ficar muito mais tempo afastado do que o necessário. Se fosse um resfriado, cinco ou sete dias seriam suficientes. Para o coronavírus, 14.

Pressão psicológica – Acumuladas, falta de profissionais e demora dos testes sobrecarregam as reduzidas equipes, obrigadas a cumprir longas jornadas de trabalho. A exaustão é somada a responsabilidades e decisões custosas. Por um lado, precisam assumir função de pai, por exemplo, no caso de mães que não podem ter os esposos acompanhando o nascimento dos filhos, como já acontece na Itália. Por outro, precisam escolher qual paciente deve ser entubado, na falta de material para dois, já relatado no Brasil.

A pressão extrapola os ambientes hospitalares. Como muitos moram longe do emprego e precisam usar o transporte coletivo, há relatos de hostilização quando são identificados por outros passageiros: profissionais já foram xingados, impedidos de entrar no vagão do metrô e até acertados por objetos.

Alguns hospitais já autorizaram funcionários a não irem vestidos de branco ou roupas médicas, e se trocarem apenas dentro da instituição.

O que tem sido feito – A seguir, o Nexo selecionou as ações tomadas pelos governos federal, estaduais, municipais e associações médica.

Entrega de equipamentos de proteção – Associações e conselhos de medicina já receberam milhares de denúncias por falta de equipamentos de proteção. Em alguns casos, a situação foi levada à Justiça do Trabalho do município, que concedeu liminar para que organizações sociais e empresas públicas fossem multadas caso não garantissem o fornecimento dos materiais básicos.

Em Recife, no Pernambuco, enfermeiros ameaçaram entrar em greve caso não recebessem novos equipamentos de proteção. A movimentação só parou quando a polícia militar passou em lojas de produtos hospitalares recolhendo máscaras para abastecimento. Em São Paulo, o governador João Doria, por meio da polícia civil, recolheu 500 mil máscaras da empresa 3M para destinar à rede pública de saúde. Antes, governos da Paraíba e Rio Grande do Sul foram alguns dos que compraram equipamentos de proteção.

O governo federal, encabeçado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, finalizou na última segunda-feira a distribuição de 40 milhões de equipamentos de proteção a unidades de saúde de todo o país. O estoque agora, segundo o ministro, está zerado. Ele afirmou que procura fornecedores no exterior, especialmente na China, que concentra a produção de 90% dos equipamentos de saúde do mundo. Até então, o país asiático represava os materiais para uso interno.

No mundo, líderes como Boris Johnson e Donald Trump já acordaram ou exigiram que indústrias produzam equipamentos médico-hospitalares ao invés dos bens para as quais foram originalmente destinadas. No Brasil, esse cenário ainda é incipiente.

Filiação de novos profissionais – O Ministério da Saúde publicou na quinta-feira, 2,  portaria que institui ação para capacitação de profissionais de outras áreas e especialidades da saúde para o combate à Covid-19.

Serão cursos à distância para pessoas formadas em serviço social, biologia, biomedicina, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia e terapia ocupacional, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia e técnicos em radiologia.

Além disso, estudantes de medicina, enfermagem, fisioterapia e farmácia poderão atuar no enfrentamento da doença por meio de edital publicado na quarta-feira, 1º. Poderão participar alunos matriculados em instituições de ensino superior do sistema federal.

Para medicina, os alunos precisarão estar cursando o 5º ou 6º ano; para as demais áreas, o último ano da graduação. Estudantes de anos anteriores poderão participar de forma menos atuante. Todos serão supervisionados por profissionais da área.

Uma portaria do Ministério da Saúde também autorizou, em caráter excepcional, o uso da telemedicina com especial atenção para o atendimento de regiões do país menos asseguradas pela rede de saúde. E o programa Mais Médicos abriu edital para que profissionais cubanos que ficaram no Brasil depois do rompimento de cooperação internacional possam voltar a atuar.

Entrega de testes – O Ministério da Saúde iniciou a distribuição de 500 mil unidades de testes rápidos adquiridos e doados pela mineradora Vale. Esse é o primeiro lote de uma doação que, quando concluída, terá entregue 5 milhões de unidades.

Mandetta, no entanto, explica que o teste é indicado a ser feito apenas entre o sétimo e décimo dia do início dos sintomas. Isso porque já foi constatado uma chance de erro de 75% em resultados negativos feitos em qualquer fase da doença, e 14% em positivos.

O governo federal também prometeu entregar outros 40 mil testes de biologia molecular, que identifica o vírus quando ele está começando a agir no organismo humano. Por mês, será 1,5 milhão de testes, entre rápidos e moleculares, todos entregues pela Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz ao Ministério da Saúde.

O Estado de São Paulo também anunciou na quinta-feira a compra de 1,3 milhão de testes da Coreia do Sul, que devem chegar até dia 15 de abril. As prefeituras do Grande ABC paulista também anunciaram a compra em conjunto de um milhão de testes na terça-feira, 31. E a cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, comprou 40 mil testes dos EUA e aguarda a chegada deles. Anteriormente, estados do Ceará, Mato Grosso do Sul e Paraíba foram alguns que adquiriram kits de testes.

Fonte: Jornal Nexo

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