Com ataque às normas de segurança, Bolsonaro aumenta riscos à vida do trabalhador
Trabalho e Emprego
Alheio aos assustadores casos de acidentes de trabalho no país, 623,8 mil apenas no ano passado, presidente extinguiu ou alterou 36 Normas Reguladoras desde maio.
O Brasil registra uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas e 40 minutos. Em 2018, de acordo com Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, houve 623,8 mil comunicações de casos envolvendo morte, invalidez ou afastamento por doenças de trabalho no país. Nos últimos sete anos, foram registrados 4,5 milhões de acidentes, dos quais 17.200 foram fatais. No período, os gastos da Previdência com Benefícios Acidentários foram de R$ 79 bilhões. Os números são assustadores, mas não a ponto de sensibilizar o governo de Jair Bolsonaro. Ao contrário, sob o pretexto de que seria preciso “desburocratizar” o regramento trabalhista, o presidente está esvaziando ou extinguindo diversas Normas Reguladoras – NRs colocando em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores.
As últimas alterações aconteceram na terça-feira, 24, na Norma Regulamentadora NR-3, sobre embargo e interdição; na NR-24, que trata das condições de higiene e conforto nos locais de trabalho; e na NR-28, de fiscalização e penalidades.
A NR 3 impôs série de condições para os auditores fiscais do trabalho embargarem ou interditarem um local de trabalho. Antes, os auditores podiam embargar todo um setor a partir de um único equipamento que colocasse a saúde ou a vida do trabalhador em risco até que a empresa tomasse as medidas de prevenção e precaução para o saneamento do problema.
Agora, os auditores terão que seguir a orientação da “matriz de risco”, copiada da Nova Zelândia e do Reino Unido, que define as escalas de gravidade das infrações, dificultando a análise de embargos e interdições, o que pode deixar os trabalhadores expostos a riscos iminentes.
A gravidade da mudança na NR3 se expressa no fato de ela acabar com a possibilidade de o Estado chegar e agir antes que o acidente ou o adoecimento ocorra, segundo explica Luiz Scienza, auditor-fiscal do Trabalho e professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Para Scienza, as alterações propostas na NR3 tendem a tornar inviável aplicar medida provisória de paralisação de atividades de alto risco. “Hoje, em situações extremas, o auditor pode embargar obras, empreendimentos, etc. [Com as mudanças], em lugar de se fazer o embargo, o auditor vai ter que adotar série de medidas anteriores, cálculos, estimativas de riscos, e enquanto isso os trabalhadores continuam suas atividades e a vivenciar os riscos extremos verificados. Isso não tem nenhum sentido, não existe em lugar nenhum do planeta. É algo completamente fora da realidade”, diz.
Higiene e conforto para quê? – Com alterações na NR 24, o governo reduz exigências de higiene e conforto nos locais de trabalho. A partir de agora, empresas com até dez trabalhadores poderão ter apenas um banheiro individual de uso comum entre os sexos, desde que garantida a privacidade. Até então, era obrigatória a instalação de banheiros masculino e feminino, qualquer que fosse o tamanho do empreendimento.
Com as mudanças, todas as instalações previstas, como sanitários, vestiários e locais para refeições, por exemplo, deverão ser dimensionadas com base no número de trabalhadores usuários do turno com maior contingente. Pela norma antiga, o dimensionamento das instalações tinha que ser feito sem considerar o trabalho por turno. Era levado em conta o número total de empregados.
Menos multas – Com a modernização da NR-28, que estabelece as linhas de fiscalização, caiu para 4 mil o número de possibilidades de multa para todo o setor produtivo. A norma antiga previa aproximadamente 6,8 mil possibilidades de multas.
Extinção das normas começou em maio – A mudança nas NRs, consolidadas ao longo de quatro décadas de debates e estudos sobre proteção no ambiente de trabalho, foi anunciada em maio por Bolsonaro, com o alegado objetivo de “simplificar as regras e melhorar a produtividade”.
O avanço sobre a regulamentação é uma forma de dizer aos agentes públicos que possuem a competência legal de proteger a vida dos trabalhadores para que “saiam do cangote dos empresários”.
A primeira NR revogada foi a de número 2. Com a medida, o empresário não precisa mais provar, antes de abrir o negócio, que seu estabelecimento segue as normas de segurança para os trabalhadores.
Outras duas NRs estão sendo modificadas também no sentido de facilitar a vida do empregador, aumentando os riscos para os empregados: a NR1 e a NR12. As mudanças previstas na NR12 são as que mais preocupam, já que vão flexibilizar as regras de segurança para ambientes com máquinas e equipamentos – responsáveis por grande número de acidentes, mortes e mutilações. Já a alteração na NR1 libera o empresário de dar treinamento ao trabalhador toda vez que ele mudar de função.
“Essa nova normatização e sistemática certamente adoecerá, amputará e matará mais trabalhadores. O lucro também é importante, claro, mas não pode desprezar os outros aspectos. Quando se trata de proteção à vida, será sempre prioridade, conforme determina a nossa Constituição Federal”, afirma Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – Sinait.
Para justificar as alterações, Bolsonaro escreveu em sua conta no Twitter: “Governo federal moderniza as normas de saúde, simplificando, desburocratizando, dando agilidade ao processo de utilização de maquinários, atendimento à população e geração de empregos”.
O presidente do Sinait avalia que é muito grave a alteração do caráter apenas consultivo e eventual da Comissão Tripartite que respondia pelas normas, antes era deliberativo e mandatório – bem como o fim das atividades das comissões temáticas.
“Na prática agora, sempre que o governo discordar, acabará por decidir conforme suas convicções. Só ouvirá e respeitará quando convergir – o que é grave, extremamente grave”, afirma.
Silva acrescenta que não é verdade que as normas estejam ultrapassadas, como faz parecer o discurso oficial, elas sofrem atualização permanentemente há décadas.
“As normas são revisadas o tempo todo”, corrobora o jornalista Leonardo Sakamoto, especializado em direitos humanos. “Elas refletem a realidade, bem como o acordo tripartite. Quando há evolução, o que é natural, quando há necessidade, atualiza-se a norma, ou até se cria uma. Isso é bastante usual. O governo está fazendo essas alterações de forma atropelada, o que já é questionável, e está fazendo isso em nome dos empregadores”.