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Foto: Adão de Souza/Prefeitura de Belo Horizonte

Cidades brasileiras começam a ter mais mortes que nascimentos na pandemia

Brasil

Morreu mais gente do que nasceu em 12 das 50 cidades com mais de 500 mil habitantes em março. Rio de Janeiro, Natal e São Bernardo do Campo estão nessa lista. Excesso de mortes pela pandemia ameaça fazer todo o país ter mais óbitos que nascimentos a partir de abril.

Várias cidades brasileiras já registram mais mortes do que nascimentos em meio à pandemia. No último mês de março, o mais mortal da crise sanitária até agora, morreu mais gente do que nasceu em pelo menos 12 das 50 cidades com mais de 500 mil habitantes do país – entre elas, Rio de Janeiro (RJ), Natal (RN) e São Bernardo do Campo (SP). Para se ter uma ideia, em março do ano passado, apenas um município havia alcançado esta proporção. Nas últimas décadas, a diferença entre nascimentos e óbitos já vinha caindo gradualmente no Brasil, mas o excesso de mortes durante a pandemia está acelerando o encontro destas duas curvas, algo que o IBGE projetava que deveria acontecer apenas daqui a mais de duas décadas, em 2047.

O elevado volume de mortes tem preocupado especialistas, que estimam que em abril o país como um todo poderá já alcançar uma marca inédita: a de registrar mais mortes que nascimentos em um mês, caso permaneçam elevadas as taxas de óbitos e de novas infecções pela Covid-19. Na quinta, 8, o Brasil registrou novo recorde de 4.249 mortes em um dia e já supera 345 mil vidas ceifadas pela crise sanitária.

O jornal El País analisou os dados das cidades mais populosas do país a partir do Portal da Transparência do Registro Civil do Brasil após o alerta do neurocientista Miguel Nicolelis, que antecipou o risco de inversão das curvas de natalidade e mortalidade no país em sua coluna no podcast desta semana. O jornal identificou que em 24% dos municípios, ambas as curvas já haviam se cruzado. Os dados incluem mortes por todas as causas e ainda são preliminares. Há um prazo médio de dez dias para que os óbitos e nascimentos sejam registrados nos cartórios e para que as informações sejam colocadas no sistema. Mas são mais um indicador do dramático excesso de mortes causadas pela pandemia, que já impactam os dados demográficos das cidades brasileiras. “É uma coisa inédita. A gente nunca teve isto de registrar mais óbitos que nascimentos”, diz Márcia Castro, professora de demografia e membro do Centro de Estudos para População e Desenvolvimento de Harvard. Ela diz que no ano passado era difícil imaginar um cenário como este para o Brasil, mas a segunda onda da pandemia associada à ausência de medidas de mitigação têm demonstrado que poderá acontecer em breve. “A gente nunca tinha visto um crescimento [de mortes] deste jeito”, diz. “Quanto mais detalhado pelos municípios, você começa a ver as discrepâncias diretamente relacionadas ao grande excesso de mortalidade da pandemia”.

Déficit inédito no Rio Grande do Sul – A situação mais emblemática é observada em Porto Alegre. No mês passado, a capital do Rio Grande do Sul registrou 3.221 mortes para 1.509 nascimentos. O Estado também registrou déficit demográfico. Enquanto 11.971 bebês foram registrados, os cartórios emitiram 15.802 certidões de óbitos naquele mês, 48% delas causadas comprovadamente pela Covid-19. O número de óbitos por coronavírus notificados em março é quatro vezes maior do que o de fevereiro, quando a doença levou embora 1.943 vidas. O Estado do Rio Grande do Sul – o único do país que teve mais mortes que nascimentos em março – viu o caos se instalar no sistema de saúde, com UTIs lotadas e o périplo enfrentado pelo colapso no sistema de saúde em inúmeros de municípios.

Recordes de óbitos e kit Covid-19 em Uberlândia – Uberlândia, no Triângulo Mineiro, registrou 262 mais óbitos do que nascimentos no último mês de março. Se no mesmo mês dos anos de 2019 e 2020 a cidade teve pouco mais de 300 mortes, o número triplicou neste ano, quando o município entrou também no momento mais grave da crise sanitária: foram 1092 registros, 63% deles já confirmados como Covid-19. Durante o ano passado, o prefeito Odelmo Leão (PP) – um aliado do presidente Jair Bolsonaro – anunciou o “tratamento precoce” contra a Covid-19 e distribuiu hidroxicloroquina, um medicamento sem eficácia para a doença, de graça para a população. Por várias vezes, foi à Justiça para flexibilizar as medidas de isolamento social. Desde janeiro, a cidade que governa vê as mortes se multiplicarem. Em março, ele mesmo admitiu que o sistema de saúde havia colapsado. Dezenas de pessoas aguardavam leitos hospitalares e tentavam transferência para tratar a Covid-19 enquanto 450 novos casos eram registrados diariamente. Durante toda a crise sanitária, o município já ultrapassou 1.900 mortes por Covid-19, mais da metade delas neste ano.

Fortaleza, uma das primeiras capitais brasileiras a sentirem os impactos da crise do coronavírus no ano passado, até conseguiu um controle do contágio após uma primeira onda difícil. Mas, neste ano, a pandemia veio avassaladora e levou colapso até mesmo para a rede de hospitais privada. A cidade teve no último mês de março 3.401 mortes por todas as causas e somente 2.426 nascimentos: uma diferença de 975 registros. Diante do agravamento da pandemia, a capital cearense segue com medidas restritivas, incluindo o fechamento do comércio não essencial e a proibição de festas e circulação nas praias.

No Recife a situação que se desenha em função da pandemia e seu impacto na pirâmide demográfica também são dramáticos. Em março de 2020, a capital pernambucana teve um crescimento populacional positivo, com 1.978 nascimentos e 1.386 mortes – um superávit de 592. Um ano depois, esse quadro se inverteu, com os óbitos à frente: 2.192 ante 1.978 – déficit de 214. O Estado vive uma alta no número de mortes pela doença, tendo registrado em 7 de abril o 30º dia seguido de crescimento na média móvel de falecimentos. No total, 12.541 pessoas morreram de Covid-19 em Pernambuco.

Várias outras cidades ainda não viram suas curvas de óbitos e nascimentos se cruzarem, mas já apresentam indicadores que apontam para este caminho. É o caso, por exemplo, das capitais São Paulo e Florianópolis. Em março de 2019 o número de nascimentos superou o de óbitos em 8.740 na capital paulista. Um ano depois, em 2020, este número diminui um pouco, para 6.151. E em março de 2021 ele despenca para 459 – o que aponta para o impacto que as mortes pela Covid-19 tiveram na cidade, recordista de mortes pela doença no país com mais de 79.440 óbitos. Já Florianópolis tinha cerca de 420 mais nascimentos do que mortes em 2019. No ano seguinte, esta diferença caiu para 336 e, neste ano, para apenas 144. A pandemia demorou mais a gerar uma crise na capital catarinense no ano passado, mas a segunda onda tem provocado filas por leitos de UTI e altas taxas de óbitos.

No panorama geral brasileiro, a diferença entre nascimentos e mortes está ficando cada vez mais estreita a cada mês. Em parte pela redução das taxas de fecundidade, com famílias menos numerosas, mas com um forte impacto pelo excesso de mortes durante a pandemia. “É algo impressionante”, considera Miguel Nicolelis. “A expectativa de vida no Brasil caiu em dois anos. Agora temos primeiras evidências de que a pandemia pode estar causando um problema estrutural nas taxas”.

A mudança na relação entre mortes e nascimentos ocasionada pela pandemia foi vista em outros países. “Isso está ocorrendo em vários países do mundo, mesmo nos Estados Unidos. Lá o excedente de nascimento caiu de 800 mil para mais ou menos 300 mil em um ano”, afirma o pesquisador Miguel Nicolelis. Os Estados Unidos são a nação com maior número de vítimas da Covid-19 no mundo, com mais de 559.000 óbitos no total, segundo dados da universidade Johns Hopkins.

Efeito demográfico pode ser temporário – A pesquisadora Márcia Castro acredita que, no Brasil, o efeito demográfico que começa a ser observado em várias cidades será temporário. À medida que as mortes por Covid-19 comecem a baixar, a razão se inverteria outra vez. “Mas o impacto do excesso de mortes é nítido, preocupante, e um reflexo da falta coordenada de controle. Espera-se que seja temporária, mas depende do que será feito para conter essa alta mortalidade sendo observada”, afirma.

A projeção do IBGE para que as duas curvas se cruzem em definitivo no país em 2047 leva em conta o cálculo de dados de um ano inteiro e, por enquanto, o que se observa é a tendência de que isso ocorra dentro de um mês. “Para que isso acontecesse em 2021, teríamos que continuar com esta loucura que está acontecendo agora por algum tempo. Espero realmente que não aconteça porque teria uma quantidade de perda de vidas que não dá nem pra imaginar”, explica.

Caso se mantenha ao longo do ano, esta inversão entre mortes e nascimentos tem impactos profundos para o país. “Você tem uma guinada demográfica, e isso é um choque nunca antes visto no país: ao inverter a relação entre mortes e nascimentos você afeta o bônus demográfico que o Brasil sempre teve, era histórico”, acrescenta Nicolelis. “Existem efeitos a longo prazo caso essa tendência perdure por vários meses, inclusive, impactos na massa produtiva, na mão de obra. Uma queda na juventude leva a uma queda na população economicamente ativa.” O pesquisador estima um impacto econômico “na faixa dos trilhões de reais” nas próximas décadas caso essa situação se consolide. “O custo do lockdown é infinitamente menor”, defende.

Fonte: El País

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