Foto: Marcos Corrêa/PR

Brasil bate 300 mil mortos pela Covid-19 e Lira põe impeachment na mesa

Política

Um ano e milhares de vítimas depois, presidente da Câmara adverte Planalto pela primeira vez: “Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos”. Mesmo pressionado, Jair Bolsonaro insiste na sua visão contrária à prática do lockdown e voltou a propagar o uso de medicamentos sem comprovação cientifica contra a Covid-19.

O Brasil superou a trágica marca dos 300 mil mortos por Covid-19 nesta quarta, 24, segundo os dados do próprio Ministério da Saúde. A vergonhosa marca vem no mesmo dia em que o novo ministro, Marcelo Queiroga, falou pela primeira vez como titular da pasta – o quarto do governo Bolsonaro na pandemia, sucedendo Eduardo Pazuello. Suas posições frustraram quem esperava uma medida radical, para reverter a curva ascendente de mortes no país. Nesta quarta mais de 2.000 mortes, chegando a exatos 300.685 óbitos. Apesar do número assustador, que poucos países carregam, o ministro Queiroga descarta um lockdown nacional para estancar a sangria de mortes no Brasil. “Quem quer o lockdown? Ninguém quer o lockdown. Nós precisamos impor medidas sanitárias eficientes”, disse Queiroga. “Até porque a população não adere ao lockdown. Precisamos de máscaras e distanciamento”.

Se a restrição de circulação já era a solução óbvia há um ano quando o presidente Jair Bolsonaro fez uma transmissão em cadeia nacional de rádio e TV em que minimizava o impacto da Covid-19, agora o desgaste político escala com a insistência da cartilha negacionista do Planalto e de seu novo ministro. A pressão dos brasileiros por medidas eficientes já chegou aos ouvidos do presidente na terça, 23, com um forte panelaço em diversas capitais do Brasil. O panelaço aconteceu enquanto Bolsonaro falava em cadeia nacional sobre o plano de preservar vidas com um ano atraso e mentindo sobre ações tomadas pela vacinação, um emaranhado de atrasos e decisões tidas como equivocadas por especialistas. Agora, o Congresso Nacional também cobra ações, quando falta um ano para as eleições de 2022.

Nas últimas semanas, houve ameaças de retaliações em projetos de interesses do governo no Parlamento caso o presidente não liderasse o combate à pandemia e deixasse de lado as picuinhas políticas de olho no calendário eleitoral. Na tarde da quarta-feira, 24, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito com o apoio do Planalto, subiu o tom como nunca antes e, ao criticar a gestão da crise, pôs o impeachment na mesa de forma indireta: “Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar. Não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados. Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável… Depende daqueles que fora daqui precisam ter a sensibilidade de que o momento é grave, a solidariedade é grande, mas tudo tem limite, tudo! E o limite do parlamento brasileiro, a Casa do Povo, é quando o mínimo de sensatez em relação ao povo não está sendo obedecido”, discursou no plenário da Câmara dos Deputados.

Não é uma advertência qualquer. Lira, que lidera o Centrão, o grupo de partidos de centro-direita que se tornou o principal eixo de sustentação parlamentar do governo, é quem tem o poder de analisar qualquer um das dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente ultradireitista e colocar um eventual processo em tramitação. Não foi o único sinal. Mais cedo, o deputado cobrou uma atuação mais incisiva do chanceler Ernesto Araújo nas negociações de vacinas e insumos. Foi em uma reunião na manhã da quarta, quando Bolsonaro reuniu pela primeira vez a cúpula do Congresso, do Judiciário e governadores aliados para se discutir a crise. Lira se deparou com um Araújo, que balança no cargo, calado, e, por fim, afirmou que esse é o momento de retirar a ideologia do combate à pandemia. “Buscamos a união de todos para que possamos nos comunicar melhor e despolitizar a pandemia”.

A fala de Lira foi endossada também pelo vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PP/AM), que tem sido bastante duro com a incompetência do governo no combate à pandemia. “Em sua fala de hoje o presidente Arthur Lira expressou perfeitamente, com precisão, maestria e sem radicalismos o sentimento da Câmara. Todos nos sentimos representados na fala do nosso presidente. A Câmara não poderia tolerar de forma passiva a morte de 300 mil brasileiros e brasileiras, parte delas decorrentes de erros gravíssimos de condução do enfrentamento da pandemia. Não vamos carregar a marcar de erros que não são nossos. Agiremos a favor do Brasil. As vezes o gesto mais fraterno que um amigo pode fazer por você é alertar que você está no caminho errado. Os sábios sabem entender isso”, manifestou pelo Twitter.

Incompetência e negacionismo seguem firmes – O “sinal amarelo” do Centrão é de que não quer se associar, sem ponto de fuga, ao presidente que, há um ano, chamou a doença de “gripezinha” e pediu que governadores e prefeitos que iniciavam a implantação de medidas de restrição de circulação naquele momento abandonassem “o conceito de terra arrasada”. Então, o Brasil tinha então 46 mortos e o presidente brasileiro fazia aparições públicas sem máscaras em meio a aglomerações, o que seguiu repetindo durante os últimos meses. Somente agora, o governo começa a ensaiar uma ação coordenada entre poderes, com um gabinete de crise que deveria ter sido montado no primeiro dia. Ainda assim, segue esbarrando na desorganização: nesta semana, quando o país atinge a vexatória marca de mortes, o Ministério da Saúde chegou a anunciar a mudança na forma de registrar as vítimas da doença, o que levaria a uma diminuição dos dados diários. Após queixas dos Estados, voltou atrás na alteração.

Bolsonaro prometeu criar um comitê nacional de acompanhamento da pandemia, que será composto por representantes do Executivo, de governos estaduais e do Congresso. A mudança, atrasada, vem na sequência do manifesto de um grupo de 1.500 economistas, banqueiros e empresários publicado no final de semana, que cobrava um confinamento nacional bem como o fim do falso dilema entre salvar vidas e recuperar a economia. “A vida vem em primeiro lugar”, disse o presidente na manhã da quarta. Mas seu método para preservar vidas, como mostrou o novo ministro da Saúde, não casa com a emergência do momento. Bolsonaro deixou claro que, mesmo com a mudança temporária de discurso, ele seguirá defendendo o uso de remédios comprovadamente ineficazes no tratamento da Covid-19, como cloroquina e ivermectina. “Tratamos da possibilidade de tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico [para usar medicamentos] off label para tratar os infectados”, afirmou o presidente.

Fonte: El País

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