Vacinas trazem alento ao Brasil em dia de redenção para a ciência
Saúde
Aprovação de uso emergencial de imunizantes pela Anvisa coroa triunfo simbólico dos cientistas sobre negacionismo, mas vacinação ainda tem obstáculos logísticos e políticos pela frente.
A decisão da Anvisa, que, neste domingo, 17, aprovou por unanimidade o uso emergencial das vacinas de Oxford e AstraZeneca no Brasil, é celebrada não apenas como um alento diante do recrudescimento da pandemia de coronavírus, mas também como uma vitória do aparato científico sobre o negacionismo e os discursos antivacinas que ecoam até mesmo no governo federal. Decisiva para o desenvolvimento dos imunizantes contra a Covid-19, a ciência foi aclamada, sobretudo, nas análises técnicas e justificativas de votos favoráveis ao aval para o início da vacinação em território brasileiro.
“No nosso vocabulário, não há espaço para negação da ciência nem para a politização das vacinas. Verdadeiramente, não há”, disse Alex Machado Campos, ao proferir o voto que decretou maioria para a aprovação das vacinas. Antes, o diretor da Anvisa elogiou o rigor científico do parecer conduzido pela relatora Meiruze Freitas, que, ao esmiuçar seu relatório, cobrou que autoridades e governos sensibilizem a população sobre a importância de se vacinar. “A vacinação contra a Covid-19 ajudará na proteção individual e coletiva. Uma vacina só é eficaz se as pessoas estiverem dispostas a tomá-la”, discursou. Ela ainda criticou a prescrição de medicamentos sem comprovação científica.
Durante a apresentação técnica da análise das vacinas, o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, destacou que o panorama de “muita tensão pela falta de insumos necessários para o enfrentamento da doença” no Brasil justifica a autorização para o início de aplicação dos imunizantes. Ao longo da reunião, a Anvisa deixou claro que um dos motivos que embasaram a decisão de liberar o uso emergencial é a “ausência de alternativas terapêuticas” para o vírus, contrapondo a tese de “tratamento precoce” – sem comprovação científica – defendida pelo governo Bolsonaro.
Os pedidos se referem a 6 milhões de doses da Coronavac importadas prontas da China, e 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford, que serão importadas do laboratório Serum, da Índia. Tanto o Butantan quanto a Fiocruz desenvolvem as respectivas vacinas no Brasil.
Minutos após a autorização da Anvisa, São Paulo realizou a primeira aplicação da vacina em território brasileiro, fora dos ensaios clínicos. Em caráter simbólico, a primeira pessoa a ser imunizada foi a enfermeira Monica Calazans, de 54 anos, que faz parte do grupo de risco por sofrer de obesidade, hipertensão e diabetes. Ela trabalha na UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, na capital paulista.
A foto da primeira aplicação no país, que mostra o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ao lado da vacinada, tem um valor político e deve dar ainda mais combustível à disputa travada ao longo dos últimos meses entre o tucano e o presidente Jair Bolsonaro em relação à vacinação.
Para dar largada à imunização, o governo federal contava com 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford que seriam importadas prontas da Índia, mas o voo para buscar os imunizantes acabou sendo adiado depois que o governo indiano declarou que não poderia dar uma data para a exportação de doses produzidas no país.
Assim, o governo federal exigiu que o Butantan entregasse todos os 6 milhões de doses da Coronavac que já estão em seus estoques. Neste domingo, antes da aprovação da Anvisa, Doria declarou que determinou a entrega das vacinas ao Ministério da Saúde ainda neste domingo. “O Brasil tem pressa em salvar vidas”, disse o governador paulista.
Em que pesem as barreiras políticas e logísticas para a distribuição dos lotes, a vacinação em massa da população brasileira tem pela frente processos ainda mais complexos que a autorização de uso emergencial. Vacinas como a de Oxford e a Coronavac ainda precisam requisitar a aprovação definitiva na Anvisa, algo que não ocorrerá de imediato, já que a agência reguladora informou que há pendências de documentação para a manutenção do aval provisório votado neste domingo. Por outro lado, o país observa um crescimento alarmante dos números de casos e mortes por coronavírus em todas as regiões.
Para Miguel Nicolelis, coordenador do projeto Mandacaru, um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia, a aprovação das vacinas não pode gerar a ilusão de que o Brasil está próximo de superar a pandemia. “A decisão da Anvisa é uma vitória a ser celebrada, mas existem ações em paralelo que precisam ser tomadas imediatamente”, afirma o cientista, que defende que o país deveria adotar um lockdown nacional, de duas ou três semanas, para frear a onda de novas infecções e ganhar tempo para a imunização gradual, citando o drama vivido pelo Reino Unido – onde a vacinação começou em dezembro, mas o número de contágio ainda não desacelerou de maneira significativa. “O impacto desse avanço sincronizado do vírus pelo Brasil tende a ser pior que o da primeira onda. A vacina vai demorar meses para fazer efeito por aqui e neste momento, temos um percentual mínimo de doses. É hora de reimplementar as medidas restritivas. Não podemos abandonar o barco enquanto a vacina está longe de contemplar a maioria da população”.
Eficácia das vacinas – Em testes realizados no Brasil, a Coronavac obteve uma eficácia geral de 50,38%. O índice indica a capacidade da vacina de proteger contra todos os casos da doença, independente da gravidade.
Já testes preliminares realizados com o imunizante da AstraZeneca-Oxford apontaram eficácia média de 70,4%. Especialistas afirmam, contudo, que os resultados das duas vacinas não podem ser comparados, já que os estudos foram realizados em público diferente e usando métodos e cálculos diferentes.
Ambos os imunizantes requerem duas doses para atingir sua eficácia máxima de proteção contra a Covid-19, e podem ser armazenados em temperatura de geladeira, o que facilita a logística de distribuição pelo país.
Guerra das vacinas – A aprovação vem somente semanas depois do início das campanhas de imunização em vários países, como Estados Unidos, Reino Unido e Estados-membros da União Europeia. O Brasil não está apenas atrás de dezenas de países, mas é também a única nação do mundo em que o presidente vem agindo ativamente para sabotar esforços de imunização. Bolsonaro ainda afirmou diversas vezes que não vai se vacinar.
A guerra de Bolsonaro contra as vacinas eclodiu no segundo semestre de 2020, quando avançou a iniciativa paralela do governo de São Paulo para garantir doses de maneira independente, diante da inação da administração federal.
A vacina promovida por um desafeto político provocou a fúria de Bolsonaro. A partir de agosto, o presidente passou a sistematicamente minar a confiança na Coronavac do governo paulista. Em novembro, Bolsonaro chegou a celebrar a morte de um voluntário brasileiro da vacina – num caso sem relação com o estudo – e a suspensão temporária dos testes.
Atrás do governo paulista, a administração federal apostou num acordo com a AstraZeneca para a produção de vacinas, em parceria com a Fiocruz. Na contramão de quase todos os países do mundo, o Ministério da Saúde se comprometeu inicialmente com apenas uma vacina, e não com um leque diversificado como ocorreu, por exemplo, na União Europeia. A americana Pfizer ofereceu 70 milhões de doses de sua vacina contra a Covid-19, em 15 de agosto, com entrega prevista a partir de dezembro de 2020. Mas o governo brasileiro não se interessou.
Bolsonaro também chegou a desautorizar Pazuello quando o ministro mostrou interesse em adquirir a vacina paulista. O lançamento da vacina da AstraZeneca acabou sofrendo atrasos após problemas na análise de dados sobre a eficácia, colocando inicialmente o precário plano de imunização federal em dúvida.
Em dezembro, diante do progresso na elaboração do plano de imunização paulista, o governo finalmente resolveu se apressar. Manifestou interesse pela vacina da Pfizer, mas esbarrou na alta demanda mundial. A Pfizer ainda reclamou dos entraves impostos pelo governo para a aprovação da vacina. A resposta de Bolsonaro foi desdenhar da empresa. “Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?”.
Anúncios contraditórios – Diante do avanço da imunização em outros países, Pazuello começou a fazer anúncios contraditórios e promessas que logo eram desmentidas. Chegou a afirmar que a vacinação poderia começar em dezembro com doses da Pfizer, mesmo depois de a empresa dizer que não poderia fornecer nenhuma dose naquele mês. Em um espaço de dias, ele ainda lançou datas como janeiro, fevereiro ou março para o início da vacinação.
Em dezembro, o governo finalmente apresentou um vago plano de imunização, sem datas e com informações incompletas sobre protocolos de segurança. Cientistas que foram citados como colaboradores reclamaram que nunca tinham visto o documento.
Tardiamente, o governo lançou em dezembro uma licitação para comprar mais de 330 milhões de seringas. O setor que produz o material reclamou que já vinha alertando o governo desde julho para apressar a compra do material. A licitação foi um fracasso. Só 7,9 milhões foram garantidos.
Bolsonaro acabou suspendendo a compra e culpou os fabricantes por supostamente elevarem os preços. No entanto, ele não havia feito objeções em 2020 ao adquirir doses de hidroxicloroquina por três vezes o valor de mercado.
E quando o fracasso da licitação foi revelado pela imprensa, o Ministério da Saúde usou suas redes para publicar um falso desmentido. No entanto, o próprio governo usou o fracasso como justificativa para barrar a exportação de seringas em documento enviado à Secretaria de Comércio Exterior.