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Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Prevent Senior, em busca do macabro milagre da cura pela cloroquina

CPI da Covid

Operadora de saúde é acusada de maquiar mortes por Covid-19, distribuir kits de tratamento precoce e fazer pesquisa sem consentimento de pacientes, em sintonia com o ‘gabinete paralelo’ do presidente da República.

As investigações da CPI da Pandemia alcançaram a Prevent Senior. A operadora de saúde que chegou a acumular 30% das mortes por Covid-19 no Brasil, no início da pandemia, virou alvo de um dossiê comprometedor. Denúncias de médicos que lá trabalharam apontam que a operadora de saúde voltada para idosos testou o chamado kit-Covid – composto por hidroxicloroquina e ivermectina, entre outros medicamentos ineficazes contra a Covid-19 – em pacientes infectados sem o aval dessas pessoas e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep. Além disso, a seguradora também teria ocultado mortes por Covid-19 como forma de apresentar as melhores estatísticas de recuperação. O dossiê aponta ainda um elo da empresa com o governo Jair Bolsonaro, através do gabinete paralelo de médicos negacionistas que operava dentro Ministério da Saúde – o próprio presidente escorou sua crença na cura pela cloroquina nos dados propagados pela Prevent Senior. Convocado nesta quarta-feira para depor aos senadores, o diretor da operadora, Pedro Benedito Batista Júnior, negou todas as acusações e se esquivou de falar dos pacientes mortos.

Uma das acusações, contudo, não foi negada por completo. Em um dos momentos de maior tensão na CPI, os senadores mostraram uma mensagem, contida no dossiê, em que Batista Júnior orientava mudanças no CID (código mundial que descreve a doença do paciente) de pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19. De acordo com a mensagem, o código deveria ser alterado para outra doença depois de 14 dias de internação ou de 21 dias na UTI —tempo do ciclo da Covid-19 no organismo humano. Batista Júnior não negou e ainda se justificou: “Se esses pacientes já tinham passado dessa data, o CID poderia já ser modificado, porque eles não representavam mais risco para a população do hospital”.

O problema é que, ao mudar o CID do paciente, a Prevent Senior passava a considerar somente as doenças ou condições decorrentes da Covid-19, e não mais a doença em si, segundo o dossiê. Assim, muitos pacientes permaneciam no hospital com sequelas e acabavam morrendo em decorrência delas, mas sem que a Covid-19 constasse no atestado de óbito. De acordo com os senadores, seria uma forma de maquiar as estatísticas, fazendo com que as mortes por Covid-19 fossem baixas. Dessa forma, o tratamento com cloroquina e outros medicamentos ineficazes poderiam ser apresentados como sucesso. “Eles consideram que depois de 14 dias o paciente não tem mais Covid. Isso aí é uma fraude”, afirmou um irritado Humberto Costa (PT-PE). “O senhor, como médico, é inacreditável”, afirmou Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico.

Esse parece ter sido o caso da morte do médico Anthony Wong, conhecido negacionista próximo do Governo Bolsonaro e que propagandeava o ineficaz kit-covid. Pediatra e toxicologista, ele morreu no dia 15 de janeiro de 2021 com o diagnóstico de úlcera gástrica e hemorragia digestiva. Mas chegou com sintomas de Covid-19 à Prevent Senior e se tratou com hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina por quatro dias. Depois, passou a usar outros remédios sem comprovação científica, como heparina inalatória e metotrexato venoso. Também recebeu vinte sessões de ozonioterapia retal. Mas nem seu prontuário médico nem seu atestado médico mencionam que ele morreu por Covid-19.

Também suspeita-se que esse procedimento tenha sido utilizado no registro da morte de Regina Hang, mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang, que chegou a gravar um vídeo emocionado recomendando o tratamento precoce. “Quando minha mãe chegou ao hospital já estava com quase 95% dos pulmões comprometidos. Enquanto a vacina não chegar para todos os brasileiros temos que lutar pela vida com todas as possibilidades que temos. Até ser diagnosticada com covid-19 eu nunca dei nenhum medicamento para prevenção a minha mãe”, afirmou o empresário em sua rede social.

Mas as informações relatadas pelos médicos do plano de saúde trazem uma outra versão. Regina Hang teria recebido o tratamento precoce com hidroxicloroquina, azitromicina e colchicina antes da internação na Prevent Senior, no dia 31 de dezembro. No hospital, recebeu ainda ivermectina, além de ozonioterapia retal, um controverso método da medicina alternativa para tratar dores articulares a feridas na pele. A mãe do dono da rede de varejo Havan faleceu em 3 de fevereiro deste ano e sua declaração de óbito foi “fraudada”, segundo o dossiê da CPI, pois não constava a Covid-19 como causa da morte.

O documento, ao qual a reportagem teve acesso, informa ainda que tanto Regina Hang quanto Wong foram tratados com ozonioterapuia pela médica Maria Emília Gadelha Serra. Ela é presidente da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica – SOBOM e também ligada à Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas – Abravac, uma entidade que promove desinformação sobre o uso das vacinas. Durante seu depoimento à CPI, Batista Júnior se esquivou de responder perguntas sobre esses dois pacientes, alegando questões éticas, como a necessidade de manter sigilo médico e a privacidade da família. Também argumentou que os atestados de óbito são de responsabilidade de cada médico.

Gabinete paralelo – O dossiê explica que a atuação do gabinete paralelo na Prevent Senior funcionava pela intermediação dos médicos Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto, dois grandes defensores do tratamento precoce, que já foram ouvidos pela CPI da Pandemia, acusados de dar orientações informais ao presidente Bolsonaro sobre a pandemia. “A comunicação e alinhamentos com o Governo federal eram constantes. O presidente da República chegou a postar, em suas redes sociais, os números da pesquisa da Prevent Senior mesmo antes dela ser oficialmente publicada”, informa o documento. Isso pode ser constatado em postagem de 18 de abril de 2020, quando Bolsonaro escreveu em seu perfil no Facebook que “segundo o CEO Fernando Parrillo, a Prevent Senior reduziu de 14 para 7 dias, o tempo de uso de respiradores e divulgou hoje, às 1:40 da manhã, o complemento de um levantamento clínico feito”, anunciando que o estudo completo seria “publicado em breve”.

Como prova da ação dos médicos, o dossiê apresenta a cópia de um protocolo terapêutico para tratamento de Covid-19, que prevê o uso da hidroxicloroquina e da azitromicina precocemente, que é assinado pelos dois profissionais. Segundo a comissão, Nise Yamaguchi frequentava a Prevent Senior para alinhar os tratamentos precoces e também assessorava pacientes considerados “especiais”, como o médico Anthony Wong, que faleceu num hospital da rede. Por meio de sua rede social, a médica informou “que não participou dos tratamentos precoces” de Wong, mas sim que “o visitou pontualmente depois da sua entubação, não sendo a médica responsável pela sua internação na Prevent Senior”.

Detalhes sobre o dossiê – O dossiê de 54 páginas que alimentou as discussões da CPI nesta quarta-feira, foi feito pela equipe do senador Humberto Costa (PT-SP) e tem como base documentos recebidos pela comissão e também a denúncia de 12 médicos que atuaram na operadora. Com a garantia de manter seu sigilo preservado, os profissionais contaram que o Governo federal realizou um acordo com a Prevent Senior para testar a eficácia da combinação de cloroquina ou hidroxicloroquina com azitromicina no tratamento da covid-19. Os médicos Rodrigo Esper e Fernando Oikawa teriam sido os responsáveis pela pesquisa. O documento informa que a CPI recebeu uma cópia de mensagem de WhatsApp, datada de 25 de março de 2020, em que a direção da empresa informava aos médicos o protocolo de utilização da hidroxicloroquina combinada com azitromicina. “Por favor, não informar o paciente ou familiar sobre a medicação nem sobre o programa”, dizia a orientação.

Nesse mesmo mês, a operadora ganhou destaque nos jornais após o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fazer uma dura crítica aos procedimentos adotados pela empresa no atendimento das primeiras vítimas da covid-19, que levou a um grande número de transmissões e mortes em um dos hospitais próprios das redes – a primeira morte oficial por covid-19 no Brasil foi registrada em um hospital administrador pela Prevent Senior. Nesse momento, já se especulava sobre a parceria informal entre a empresa e o chamado gabinete paralelo do Governo Bolsonaro. De acordo com o dossiê, o objetivo da parceria seria “facilitar a manipulação dos resultados da pesquisa para ´comprovar’ a eficácia do tratamento e entregar o combinado com os ‘assessores’ do presidente da República”.

A empresa, no entanto, só pediu autorização à Conep para realizar a pesquisa em 6 de abril de 2020. O estudo chegou a ser autorizado em 14 de abril, porém foi suspenso seis dias depois, já que a comissão de ética identificou diversas irregularidades, como “inexistência de grupo de controle”, “diferença entre o número de participantes declarados (700) do ensaio clínico com o número definido no projeto de pesquisa (200)”, além de “burla no dever de notificar casos de covid-19″, que eram inferior ao número real.

O dossiê informa ainda que novos clientes da empresa, desde meados do ano passado, recebiam em casa os kit-covid sem nem passar pelo atendimento médico. Os medicamentos eram enviados com uma “receita padrão, todas idênticas, e assinada sempre pelo mesmo médico, Rafael Souza da Silva”. O material era distribuído também nos consultórios para pacientes com síndromes gripais. “O médico que não entregava era punido”, informa a denúncia. A Agência Nacional de Saúde Suplementar, no entanto, só realizou uma diligência na operadora para averiguar denúncias sobre a distribuição do kit-covid em 17 de setembro deste ano.

A comissão também afirma que os médicos da Prevent Senior relatam que “um excesso de pacientes em tratamento paliativo”, ou seja, que não recebem tratamento para reversão de seu estado clínico. De acordo com o dossiê a medida visa a “cortar gastos” encaminhando os idosos para o que chamou de “corredor da morte”. “Há diversos relatos de familiares e médicos que afirmaram que a Prevent Senior improvisou um local na Vila Olímpia para colocar os casos paliativos de Covid-19″, informa o documento. Ali, em leitos improvisados, os idosos recebiam apenas morfina, “uma prática comum para os pacientes que iriam morrer no tal paliativo”.

“Obediência e lealdade” – Os médicos que denunciaram a ação da Prevent Senior também aproveitaram a comissão para se defender de má conduta ética, afirmando que a política da empresa é de “obediência e lealdade”. Isto é, “quem cumpre as ordens, como prescrever medicamentos impostos pela Diretoria”, tem mais chances de ascender hierarquicamente na companhia, conforme o escrito no dossiê. Já os profissionais que aplicam “a medicina de acordo com sua própria convicção e análise clínica” sofrem retaliações ou são até mesmo demitidos. “Não há autonomia médica”, concluiu o dossiê. Em virtude dessa estrutura altamente verticalizada, “há muitas mudanças nos atestados de morte sem qualquer transparência ou controle entre plano de saúde e hospital, já que são a mesma empresa”.

Em julho deste ano, a Prevent Senior contava com 542.471 clientes, a maioria em São Paulo, com um aumento de quase 12% em relação a agosto do ano passado, segundo os dados disponíveis no portal da Agência Nacional de Saúde – ANS. Cerca de 4.000 pacientes internados na rede de hospitais da operadora com Covid-19 morreram ao longo da pandemia. Isso representa cerca de 22% dos 18.000 usuários que chegaram a ser hospitalizados por conta da doença nas unidades administradas pela empresa, segundo os dados divulgados por Batista Júnior durante a CPI.

Ainda segundo ele, a média de idade dos pacientes que morreram é de 68 anos. Quando se leva em conta todos os clientes da Prevent Senior que foram diagnosticados com a doença, inclusive aqueles que não precisaram de internação, os 4.000 óbitos representam 7% do total – enquanto que no Brasil a taxa de letalidade no país é de aproximadamente 2,78%.

Emparedado, o executivo da empresa ouvido na CPI colocou em dúvida o dossiê e apontou o dedo para os profissionais que entraram no prontuário de pacientes que não eram seus, extraíram dados e divulgaram para a imprensa e para a CPI. Segundo ele, existe uma tentativa de “usurpar” o nome da empresa e os médicos que estão acusando a Prevent Senior haviam sido demitidos por “graves falhas éticas e morais, como invasão de prontuários e tratamento inadequados”. “Esse dossiê tem inúmeras fraudes que precisam ser avaliadas”, disse o executivo, segundo quem os prontuários compilados no documento estão incompletos e podem ter sido adulterados. Indignados, os senadores afirmaram que há provas de que o executivo está mentindo.

Ao longo de seu depoimento, Batista Júnior passou de testemunha a investigado da CPI. Negou todas as acusações: disse que não tinha ligação com o gabinete paralelo de Bolsonaro nem que defendia o kit-covid, mas sim a autonomia médica e a prescrição de remédios combinada entre o profissional e o paciente. Também assegurou que nenhuma pesquisa foi feita, mas sim uma “observação”. Os integrantes da CPI demonstraram ao longo da sessão desta quarta vídeos e tuítes do clã Bolsonaro em que a Prevent Senior foi citada como exemplo de instituição que aplica com sucesso o tratamento precoce (e ineficaz) contra a Covid-19. “Quem prescreve qualquer medicação é o próprio médico e, naquele momento houve, até devido a pronunciamentos não só da Presidência, mas de outras pessoas influentes também, uma série de pacientes exigindo a prescrição da medicação”, explicou, esquivando-se mais uma vez de sua responsabilidade.

Fonte: El País

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