Número de negros assassinados no Brasil em 10 anos subiu 11,5%, revela Atlas da Violência
Brasil
Mortes de não negros caem 12,9% no mesmo período. Levantamento mostra que, em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios. 'É como se estivéssemos falando de países diferentes', diz diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No Brasil, os casos de homicídio de pessoas negras aumentaram 11,5% em uma década, de acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado ontem, 27, em São Paulo, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP. Ao mesmo tempo, entre 2008 e 2018, período avaliado, a taxa entre não negros fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%.
Feito com base no Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, o relatório evidencia ainda que, para cada pessoa não negra assassinada em 2018, 2,7 negros foram mortos, estes últimos representando 75,7% das vítimas. Enquanto a taxa de homicídio a cada 100 mil habitantes foi de 13,9 casos entre não negros, a atingida entre negros chegou a 37,8.
Na avaliação dos especialistas que produziram o documento, os números deixam transparecer o racismo estrutural que ainda perdura no país. “Um elemento central para a gente entender a violência letal no Brasil é a desigualdade racial. Se alguém tem alguma dúvida sobre o racismo no país, é só olhar os números da violência porque traduzem muito bem o racismo nosso de cada dia”, diz a diretora executiva do FBSP, Samira Bueno.
“É como se estivéssemos falando de países diferentes, tamanha a disparidade. A gente percebe que a política implementada, seja Estatuto da Criança e do Adolescente, seja Estatuto do Desarmamento, seja política local implementada por prefeitura ou governo, de algum modo atua na prevenção, é capaz de prevenir a morte de pessoas, mas de pessoas não negras – brancos, amarelos e indígenas”, disse Samira Bueno.
Recorte de gênero – Outro número que justifica a afirmação em torno do racismo diz respeito aos homicídios de mulheres. Na década examinada, constatou-se uma redução de 11,7% na taxa de vítimas não negras, ao mesmo tempo em que a relativa a negras subiu 12,4%.
No período, os estados que tiveram as mais altas taxas de homicídios entre a população negra estão localizados nas regiões Norte e Nordeste, com destaque para Roraima – 87,5 mortos para cada 100 mil habitantes, Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3). Observando as taxas de mortes de negros e não negros, é como se quem não é negro vivesse na Rússia, e os negros na Guatemala, México, Colômbia.
“Essas altíssimas taxas são fruto de dois fenômenos: a violência doméstica, que cresce há pelo menos três anos, e a nova dinâmica no crime organizado. Vimos muitos episódios de mulheres decapitadas, que não faz parte da linguagem dos grupos organizados no sudeste. Existe uma nova gramática das facções para as mulheres, seja por entrar no tráfico, seja porque se relaciona com um homem faccionado. Ajuda a entender como destoam os números no Brasil”, explicou Samira Bueno.
No total, somente em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas em todo o país. Nesse quantitativo, estão incluídas as ocorrências de feminicídio, embora não estejam especificadas. O índice nacional foi de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino, o que indica que uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas. Em comparação ao ano anterior, o que se viu foi uma redução de 9,3% entre 2017 e 2018 na taxa geral, acompanhada por queda em 19 das 27 unidades federativas.
“Ao longo dos últimos 10 anos, a diferença entre a violência contra mulheres negras e não negras se acentua, ao invés de reduzir. Se conseguimos reduzir a violência letal foi para uma camada, não pra todo mundo”, apontou. “A cada ano vemos uma oscilação pouco significativa para mais ou para menos, mas a cor da mulher é que muda os números. Que pública é essa que não protege a mulher negra?”, questionou.
Morte entre jovens – O relatório também chama a atenção para a preponderância de jovens entre as vítimas de homicídios ocorridos em 2018. Ao todo, 30.873 jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos foram mortos, quantidade que equivale a 53,3% dos registros.
No intervalo de 2008 a 2018, observou-se um aumento de 13,3% na taxa de jovens mortos, que passou de 53,3 homicídios a cada 100 mil jovens para 60,4. Os homicídios foram a principal causa dos óbitos da juventude masculina, representando 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,3% entre o grupo com faixa etária de 20 a 24 anos; e 43,7% daqueles com idade entre 25 e 29 anos.
Quando se observam as taxas de mulheres e homens, identifica-se uma diferença importante. No caso delas, as proporções de homicídio são de 16,2% entre aquelas que têm entre 15 e 19 anos; 14% na parcela de 20 a 24 anos; e de 11,7% entre jovens com faixa etária de 25 a 29 anos.
Em 2018, 16 unidades federativas apresentaram taxas de mortalidade violenta juvenil acima da nacional, que é de 60,4 por 100 mil. No topo da lista, aparecem Roraima (142,5), Rio Grande do Norte (119,3) e Ceará (118,4). As menores taxas foram de São Paulo (13,8), Santa Catarina (22,6) e Minas Gerais (32,6).
“É uma geração inteira que a gente está matando e é algo que não nos sensibiliza, infelizmente, que vai passando. [As vítimas] são sujeitos [considerados] descartáveis”, afirma Samira.
Políticas públicas – Sobre a morte prematura de jovens brasileiros, o pesquisador Daniel Cerqueira, que também assina a publicação, ressalta que a efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente depende de como são conduzidas as políticas públicas. Os dados apresentados mostram que o conjunto de normas fez com que a taxa de homicídios entre crianças e adolescentes caísse para 3,1%, a cada ano, entre 1991 e 2018, revertendo o crescimento anual de 7,8%, registrado entre 1980 e 1991.
“De 1980 a 2018, foram 265 mil crianças assassinadas no Brasil. É uma barbárie, é muito chocante, é um número que nos leva a repensar o país. Tem algo errado aí. Duas coisas que ajudaram a frear essa barbárie foram o ECA e o Estatuto do Desarmamento. Antes do ECA, quando olhamos a violência armada, a taxa de homicídio anual crescia a incríveis 9,4% a cada ano. Depois do ECA e antes do Estatuto do Desarmamento, de 1991 a 2003, o ritmo de crescimento dos homicídios de crianças diminuiu para 4,9% e, depois do Estatuto do Desarmamento, o ritmo foi de 1,7%. Ou seja, quando comparamos antes e depois dos estatutos, a morte por violência armada de nossas crianças caiu a um quinto e, no entanto, nós estamos desconstruindo parte dessa peça agora, com o desmantelamento do Estatuto do Desarmamento e com um debate que começou a surgir na sociedade, com preconceitos contra o ECA”, explica Cerqueira, acrescentando que, desde 2009, foram promovidas mudanças na legislação brasileira que permitiram uma circulação maior de porte de armas de fogo e dificultaram o rastreamento de munições e armas, muitas delas usadas por grupos criminosos, incluindo milícias.
O FBSP e o Ipea destacam, ainda, que, antes de 2003, quando o Estatuto do Desarmamento passou a vigorar, a velocidade de crescimento das mortes era cerca de 6,5 vezes maior do que a observada depois da sanção presidencial. Caso o número de homicídios se multiplicasse da mesma forma como acontecia antes do Estatuto do Desarmamento, o total poderia ultrapassar 80 mil, em 2018.
Naquele ano, a quantidade já foi elevada: foram notificados 41.179 assassinatos por arma de fogo no país, que correspondem a 71,1% de todos os homicídios do país.