Governo usa regra derrubada por STF e Congresso para vetar ações contra Covid-19
Política
Última ação do presidente da República foi vetar acesso à água potável e leitos a indígenas na pandemia. Presidente disse que não havia orçamento determinado para gastos de lei aprovada, mas técnicos do Congresso contestam dizendo que emergência sanitária permite cobertura.
O presidente Jair Bolsonaro vetou medidas para combater a pandemia de Covid-19, entre elas a garantia de água potável para comunidades indígenas e a distribuição de máscaras para pessoas pobres, usando uma regra derrubada pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Os vetos ainda serão analisados pelos deputados federais e senadores.
Com isso, parlamentares se articulam para recuperar projetos aprovados na Câmara e no Senado que foram barrados pelo Palácio do Planalto. O governo argumenta que os vetos estão amparados por uma regra que exige o demonstrativo de impacto financeiro e orçamentário para ações como essas, ou seja, é preciso saber o custo. Técnicos do Congresso, por outro lado, afirmam que a obrigação não se aplica para medidas relacionadas ao novo coronavírus.
Na quarta-feira, 8, Bolsonaro vetou medidas da lei de proteção a indígenas durante a pandemia, retirando, na prática, a obrigação de o poder público garantir acesso à água potável, distribuir materiais de higiene e ofertar leitos hospitalares e de UTI em territórios indígenas. O argumento usado para barrar as ações foi o fato de o Congresso ter aprovado a proposta criando despesas para o Executivo sem demonstrar o impacto financeiro e orçamentário.
O mesmo argumento foi adotado em outros vetos que impactam diretamente no combate ao novo coronavírus. Na semana passada, Bolsonaro impediu a obrigação de o poder público fornecer máscaras de proteção individual para populações vulneráveis. Usando a mesma justificativa, vetou o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para empregados demitidos sem justa causa durante a pandemia que ficam sem acesso ao seguro-desemprego.
O argumento empregado por Bolsonaro é questionado por técnicos do Congresso. Isso porque há uma série de regras excepcionais que autorizam o aumento de despesa sem a necessidade de estimativa do impacto no orçamento, a indicação da fonte de recursos ou a compensação do gasto quando as medidas estão relacionadas à doença.
O Orçamento de Guerra, por exemplo, aprovado em maio, libera o governo federal para ampliar gastos com ações contra a Covid-19 sem a preocupação de cumprir os limites orçamentários durante o estado de calamidade pública – solicitado pelo Executivo e decretado pelo Congresso. Com isso, o orçamento diretamente relacionado à pandemia foi separado das demais despesas do governo com regras específicas.
Além disso, o Legislativo aproveitou o projeto de socorro financeiro aos Estados em maio e alterou a Lei de Responsabilidade Fiscal para afastar a exigência do demonstrativo financeiro e orçamentário quando a medida é relacionada à pandemia do novo coronavírus.
“Não é um argumento correto (do governo) se a despesa está relacionada à calamidade. A justificativa do veto parece um pouco incoerente”, afirmou o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente – IFI do Senado, Felipe Salto. Nos bastidores, outros técnicos do Congresso também apontaram que houve incoerência na justificativa dos vetos.
A ampliação de gastos na pandemia está amparada ainda no decreto de calamidade pública aprovado pelo Congresso em março deste ano a pedido do próprio governo. Outro amparo foi a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, no mesmo mês, liberando o governo a descumprir regras da Lei de Responsabilidade Fiscal durante a crise da Covid-19.
Nos vetos, o Planalto citou o artigo 113 da Emenda do Teto de Gastos, medida transitória presente na Constituição Federal. O dispositivo exige que o projeto de lei que crie ou altere despesa obrigatória seja acompanhado da estimativa do impacto orçamentário e financeiro. Na interpretação de técnicos do Congresso, porém, as medidas emergenciais este ano afastam essa exigência para ações voltadas à doença.
“A própria emenda do teto excepcionaliza o crédito extraordinário e os artigos das leis deixam claro que essas despesas vão ser excepcionais e por óbvio não haverá fonte orçamentária para isso. A fonte é dívida, o governo vai ter de fazer dívida para financiar essas despesas adicionais”, comentou Felipe Salto, diretor-executivo da IFI do Senado.
Já a Secretaria-Geral da Presidência da República afirmou que o Orçamento de Guerra e as alterações da LRF afastaram os requisitos legais durante o período da pandemia e o cumprimento da regra de ouro, mas não deixaram o governo e o Congresso livres para aprovar uma lei sem demonstrar o impacto financeiro.
Supremo – Após o governo vetar uma série de dispositivos da lei que regulamenta o combate ao novo coronavírus entre indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, determinou cinco medidas a serem adotadas pelo governo federal para conter o contágio e a mortandade por Covid-19 entre a população indígena.
Entre as iniciativas determinadas por Barroso, estão o planejamento de ações com a participação das comunidades, a apresentação de planos para contenção de invasores e do próprio vírus nas reservas e a criação de barreiras sanitárias para preservar indígenas isolados. Ele determinou ainda que seja garantido o acesso de toda essa população ao Subsistema Indígena de Saúde.
O ministro destacou que as medidas “devem envolver diálogos com o Poder Público e com os povos indígenas, sem se descuidar, contudo, dos princípios da precaução e da prevenção”.
Agora, o governo terá três dias para criar uma comissão formada por membros Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, Procuradoria Geral da República e Defensoria Pública da União que ficará responsável por gerenciar as ações.
Na decisão, o ministro destacou que os índios, por razões históricas, culturais e sociais, são mais vulneráveis a doenças infectocontagiosas, apresentando taxa de mortalidade superior à média nacional. Segundo dados da Apib, mais de 10 mil casos de Covid-19 foram confirmados entre indígenas até o último dia 2, com 408 mortes.
De acordo com a Apib, a mortalidade pelo coronavírus entre esses povos é de 9,6%, enquanto na população brasileira em geral é de 5,6%. Um estudo da Universidade Federal de Pelotas – Ufpel, em parceria com o Ministério da Saúde, revelou que a prevalência da Covid-19 entre a população indígena urbana (5,4%) equivale a cinco vezes a encontrada na população branca (1,1%).