Ernesto Araújo mente sobre ataques à China e transfere fracasso na diplomacia da vacina para a Saúde
CPI da Covid
Ex-ministro nega atritos com China e alinhamento com Trump e tenta transferir responsabilidade por falta de vacinas à gestão de Pazuello na Saúde. Brasil abriu mão de receber 168 milhões de vacinas. Ex-chanceler diz que Bolsonaro só o orientou a interferir na compra de cloroquina e de viagem para conhecer spray nasal em Israel.
O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo usou o seu depoimento na CPI da Pandemia, nesta terça-feira, para responsabilizar o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, pelo fracasso na diplomacia das vacinas covid-19 no âmbito da iniciativa Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde. Inicialmente, a OMS tinha sugerido que os países que aderissem a esse pacto poderiam comprar vacinas para até 50% de sua população. No caso do Brasil, poderiam ser adquiridas doses para imunizar cerca de 105 milhões de pessoas. Porém, o país optou por firmar um acordo mais singelo e receber o patamar mínimo definido pela OMS, o equivalente a imunização de 10% dos habitantes. Em setembro passado, o presidente Jair Bolsonaro firmou o acordo para comprar 42 milhões de imunizantes – duas doses por pessoa.
Na versão de Araújo, esta escolha foi técnica e tomada pelo Ministério da Saúde. “Essa decisão não foi minha, não foi do Ministério das Relações Exteriores, foi uma decisão do Ministério da Saúde, dentro da sua estratégia de vacinação”, disse ao ser indagado de quem era a responsabilidade por abrir mão de mais de 168 milhões de doses. Araújo esteve no cargo entre janeiro de 2019 e março de 2021. Entre as razões para a sua queda estão as dificuldades em o país comprar o imunizante, diante de um presidente que pouco ou nada fez para tal, e o enfrentamento contra senadores que não o reconheciam capacitado para o cargo. “Ele transferiu o ônus da responsabilidade ao Ministério da Saúde e ao ex-ministro Pazuello”, avaliou o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL).
Araújo também pintou um retrato positivo da atuação do Itamaraty na aquisição de vacinas, tentando transferir problemas na área ao Ministério da Saúde sob a gestão Pazuello. No entanto, várias das afirmações de Araújo foram desmentidas imediatamente pelos senadores. Araújo, por exemplo, afirmou que não foi contra a adesão do Brasil ao consórcio Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde – OMS, para a distribuição de vacinas. Segundo Araújo, o Itamaraty “esteve sempre atento” à iniciativa. Mas o senador Otto Allencar imediatamente apontou que o Itamaraty nem sequer mandou representantes para as duas primeiras reuniões do consórcio, que ocorreram em abril e maio de 2020. O governo só acabou formalizando sua adesão ao consórcio em setembro do ano passado, e optou apenas por adquirir a compra mínima prevista pelo mecanismo, equivalente a 10% da população brasileira, quando havia a opção para solicitar até 50% de cobertura.
Araújo também afirmou que “o Brasil foi o primeiro país que recebeu vacinas exportadas pela Índia”, o que, segundo ele, atestaria uma diplomacia eficiente da pasta. No entanto, antes de enviar 2 milhões de doses para o Brasil numa operação marcada por atrasos e uma campanha fracassada de propaganda do governo Bolsonaro, os indianos exportaram doses para o Butão, Maldivas, Bangladesh, Nepal, Mianmar e o arquipélago de Seicheles.
O ex-ministro ainda afirmou que teve conhecimento da carta enviada pelo CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, ao governo brasileiro em setembro do ano passado, perguntando se o país teria interesse em comprar a vacina da empresa. O documento ficou dois meses sem resposta.
Araújo disse que “talvez” tenha tomado conhecimento da carta em 14 de setembro, dois dias depois de ela ser enviada, mas que caberia ao Ministério da Saúde definir de forma centralizada a estratégia de vacinação. Ele também disse não saber por que houve demora na resposta do governo.
Ele disse também que nas reuniões ministeriais dais quais participou a compra de vacinas para não foi discutida especificamente. Houve apenas uma exceção, segundo o ex-ministro, em fevereiro ou março deste ano, quando se teria debatido um contato com a Pfizer.
China – Ao longo de quase seis horas de depoimento, Araújo ainda mentiu sobre os seus discursos anti-China, minimizou a importância das falas xenofóbicas do presidente Bolsonaro e tentou criar uma falsa narrativa de que o Brasil não se alinhou automaticamente ao governo do norte-americano Donald Trump. Ele também falou que, até onde sabe, Bolsonaro só pediu que o Itamaraty atuasse diretamente em dois aspectos no enfrentamento ao coronavírus: na compra de insumos para a cloroquina da Índia e na viagem para conhecer um spray nasal que está sendo testado em Israel. Na comitiva, estavam vários assessores sem qualquer qualificação técnica. O tour israelense custou cerca de R$ 500 mil aos cofres públicos.
Os ataques à diplomacia chinesa ganharam destaque em abril do ano passado, quando Araújo publicou um artigo em seu blog, no qual chamou o coronavírus de “comunavírus”. Na ocasião ele escrevia uma análise sobre o livro do teórico marxista Slavoj Žižek. No texto, o ex-ministro afirmou que esta doença nos faz despertar, “novamente para o pesadelo comunista” e que o “jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual, facilmente controlável”. Apesar da referência documentada por ele próprio em seu site pessoal, Araújo disse na CPI que jamais promoveu atritos com a China. “Seja antes, seja durante a pandemia”. O ex-ministro ainda afirmou que não entrou em enfrentamento contra o embaixador da China no Brasil Yang Wanming, apesar de fazê-lo por meio das redes sociais.
É público que, ao longo de toda a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro emitiu diversas opiniões que causaram revolta da comunidade internacional e desconforto em Pequim. Uma delas foi quando ele insinuou que o vírus foi criado pela China em um laboratório – na prática, isso contribuiu para a paralisação e atraso da importação de insumos para a produção de duas vacinas no Brasil pelos institutos Butantan e Fiocruz. Ainda assim, Araújo diz que os discursos do presidente não interferiram na compra dos imunizantes. Na sua avaliação, o que trouxe prejuízos à imagem do Brasil no exterior foram “interpretações e notícias completamente equivocadas”, que procuravam criar uma imagem de que há ameaças à democracia no Brasil, há uma política de afrontamento aos direitos humanos e uma política deliberada de destruição ambiental. “Essas três dimensões principais, sempre com base em interpretações totalmente equivocadas da atual realidade brasileira, conduziram a problema, sim, de imagem no exterior, e não falas do presidente da República”, analisou.
Para membros da CPI, as declarações de Araújo ajudam a cercar ainda mais o governo Bolsonaro. “Temos uma série de indícios firmes, substanciais no sentido de que existia uma cadeia de comando e que essa cadeia de comando se aparelhou com orientações fora da técnica e tomou decisões prejudiciais para a saúde dos brasileiros”, ponderou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Já o relator Renan Calheiros reforçou a avaliação de que havia um aconselhamento paralelo de Bolsonaro: “Tínhamos o Ministério da Doença, despachando com o presidente e um ministério da Saúde que nem sequer podia comprar vacinas”, afirmou.
Cloroquina – À CPI, Araújo confirmou que o Itamaraty atuou para obter cloroquina no mercado internacional. A droga sem eficácia comprovada contra a covid-19 vem sendo promovida por Bolsonaro como um tratamento contra a doença desde março de 2020, mesmo com estudos descartando efeitos benéficos.
“Em março, havia expectativa de que houvesse eficácia no uso da cloroquina para tratamento da Covid, não só no Brasil, mas no mundo. Isso baixou precipitadamente o estoque de cloroquina e fomos informados sobre isso pelo Ministério da Saúde. A pedido do Ministério da Saúde buscamos facilitar a importação de insumos para a produção de cloroquina”, disse.
Apesar de afirmar que o envolvimento do Itamaraty na importação de cloroquina ocorreu a pedido do Ministério da Saúde, ele também reconheceu que houve participação de Bolsonaro no assunto. Depois da resposta sobre o papel do Ministério da Saúde, o relator da CPI, Renan Calheiros, questionou Araújo se o tema havia sido discutido com outros membros do governo.
“Não foi exatamente um pedido para implementar esse pedido do Ministério da Saúde, mas o presidente da República, em determinado momento, pediu que o Itamaraty viabilizasse um telefonema dele com o primeiro-ministro [da Índia]”, disse o ex-ministro.
Críticas – Durante a sessão, a senadora Kátia Abreu fez uma dura fala contra Araújo. Sem fazer perguntas, ela ironizou as posições supostamente moderadas que Araújo apresentou à CPI, afirmando que ele tem duas “personalidades”.
“O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor, no Ministério das Relações Exteriores, foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, para um naufrágio. Bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira, foi isso que o senhor fez. Isso é voz unânime dos seus colegas no mundo inteiro”, afirmou Abreu.
“A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco e ouvimos a voz, e um outro Ernesto, que eu não sei onde fica, nas redes, na internet, nos artigos, nos blogs, falando coisas totalmente diferentes. Eu sinceramente estou confusa sobre qual personalidade nós devemos considerar”, completou. Em janeiro, Abreu já havia protagonizado um embate com Araújo no Senado e chamado o ex-ministro de “marginal” após o diplomata acusá-la de agir como lobista dos chineses na instalação do 5G no Brasil.