Após uso de kit Covid, pacientes vão para fila de transplante de fígado; pelo menos 3 morrem
Saúde
Medicamentos sem eficácia contra o vírus, como ivermectina e hidroxicloroquina, que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, trazem riscos de efeitos colaterais; médicos relatam hepatite causada por remédios. Venda dessas drogas subiu até 557%.
O uso do chamado kit Covid, que reúne medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios, segundo médicos ouvidos pelo Estadão.
Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia.
Números do Conselho Federal de Farmácia – CFF mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. O remédio, indicado para tratar sarna e piolho, não teve sua eficácia contra a Covid comprovada. Seu uso contra o coronavírus foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos – EMA e pela própria fabricante do produto, a MSD.
O produto, porém, é um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagnóstico de Covid e receberam a prescrição do chamado “tratamento precoce”.
Quatro deles foram atendidos no Hospital das Clínicas da USP e o outro no HC da Unicamp. Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos. “Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino”, diz Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade. Sem esses dutos, explica ele, substâncias que podem ser tóxicas ficam na circulação sanguínea, favorecendo quadros infecciosos graves. “O nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes está com mais de 40”, conta ele.
Segundo D’Albuquerque, um transplante de fígado foi feito em uma mulher de 61 anos, sem comorbidades, que teve Covid-19 no ano passado e tomou ivermectina. Os médicos identificaram lesões irreversíveis nos dutos hepáticos, associadas a quadros infecciosos. “A ivermectina seca os dutos biliares e faz com que a bile deixe de ser eliminada e volte para o sangue, causando infecções”, disse.
Na mesma UTI, um homem de 53 anos, de porte atlético e sem antecedentes de doenças crônicas, aguarda entrar na lista de transplantes. Ele foi diagnosticado com Covid-19 em dezembro passado e, logo depois do Natal, notou os olhos amarelos. Ao fazer os exames, soube que tinha lesões graves no fígado. Ele relatou uso continuado de ivermectina, azitromicina e, quando teve Covid, também amoxicilina. “Ele tomou tudo o que tinha direito e, quando teve Covid, não precisou ser hospitalizado e achou que estava bem. O problema veio depois”, disse o médico.
D’Albuquerque afirma que o quadro de hepatite isquêmica surpreendeu os médicos, pois a Covid-19 não costuma acometer o fígado. Por isso, os médicos associaram o uso das drogas do Kit-Covid com lesões prévias que deixam o órgão mais vulnerável à ação do vírus. Agora, os especialistas estão acompanhando os casos para avaliar quanto da destruição do orgão foi causada pelos remédios e quanto pelo vírus.
D’Albuquerque alerta ainda que a associação de azitromicina e amoxicilina pode ser lesiva ao fígado, mesmo em pequenas doses. Ele lembra que é necessário sempre consultar um médico antes de tomar qualquer remédio.
Jovem de 22 anos apresentou lesões hepáticas graves – A equipe do HC acompanha, ainda, um jovem de cerca de 22 anos e um paciente de 61 anos. Ambos apresentam lesões graves no fígado e relataram uso do chamado “kit-Covid”.
No Hospital das Clínicas de Campinas, a professora Ilka Boin, coordenadora do serviço de transplante de fígado, afirma que as lesões hepáticas que vêm sendo encontradas em alguns pacientes são lesões tóxicas medicamentosas. E que, nos casos estudados, os únicos remédios estudados foram os do Kit-Covid. “No começo diziam que o Kit tinha três medicamentos. Agora já são mais de cinco e as pessoas tomam há 40, 50 dias. É preciso dizer que a única forma de prevenção é a vacina. Esses medicamentos não têm indicação para Covid no mundo todo”, disse a professora.
Também na fila de transplante, um paciente tratado no HC de Campinas tem 50 anos e é morador da capital paulista. Ele foi encaminhado para o hospital público porque perdeu o convênio médico. E disse que tomou ivermectina, cloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D. Mesmo assim, foi infectado e teve Covid-19 há três meses. No fim de janeiro, já depois da doença, percebeu o olho amarelo e buscou ajuda médica. Os exames e a biópsia revelaram o problema no fígado. Ele tem porte atlético e não apresenta comorbidades.
Além do kit Covid, Ilka alerta que o uso de corticoides antes da manifestação da Covid-19 pode atrapalhar o tratamento quando o paciente mais precisa, na fase inflamatória da doença.
Entidades médicas pedem suspensão do kit Covid – Após ver os danos que os medicamentos causam nos pacientes, a Associação Médica Brasileira – AMB, que já apoiou a autonomia dos médicos, reconheceu que fármacos sem comprovação científica devem ser banidos do tratamento.
Em boletim divulgado nesta terça-feira 23, a AMB afirma reconhece que “infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”.
A manifestação vai na contramão do que foi divulgado em julho do ano passado, quando a associação defendeu a “autonomia dos médicos” para receitar os medicamentos.
No novo texto, a AMB destaca como medidas de prevenção ao coronavírus a aceleração da vacinação, a manutenção do isolamento social, o uso de máscaras e, a ação das autoridades para solucionar a falta de medicamentos no atendimento de pacientes internados, “em especial de bloqueadores neuromusculares, opioides e hipnóticos – indispensáveis ao processo de intubação de doentes em fase crítica”.