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Proposta do governo para o SUS desampara ainda mais as cidades

Saúde

Além de não estabelecer critérios objetivos, transparentes e impessoais, portaria que cria o Programa Previne Brasil viola o preceito constitucional do controle social e o princípio do não haver retrocesso no custeio de direitos fundamentais.

Criado há 30 anos, o Sistema Único de Saúde – SUS nunca esteve tão ameaçado. O governo Bolsonaro apressa a tramitação de portaria que vai mudar substancialmente a maneira como a verba para a atenção básica é repassada aos municípios. É o Previne Brasil, lançado oficialmente na última terça-feira, 12. A universalidade, grande pilar do sistema, dará lugar a uma estranha meritocracia. O repasse será feito não mais conforme a população de cada cidade, mas pelo número de cadastros nas unidades públicas de saúde. Outro mote é premiar as localidades que atinjam os “melhores resultados”: tenham unidades informatizadas, horários expandidos, profissionais especializados. Falta combinar com a realidade.

Pela medida, o governo federal irá calcular o maior ou menor repasse de recursos conforme o número de pacientes cadastrados nas unidades de saúde e o desempenho delas a partir de indicadores como controle de diabetes, hipertensão, infecções sexualmente transmissíveis e qualidade do pré-natal.

A portaria também prevê maior ou menor repasse à atenção primária em saúde conforme critérios de vulnerabilidade socioeconômica, considerando pessoas cadastradas no Programa Bolso Família, no Benefício de Prestação Continuada – BPC ou no regime previdenciário com até dois salários mínimos.

“Como avaliar desempenho, se o governo tirou oito dos meus médicos e não repôs?”, pergunta Maria Dalva Amim dos Santos, secretária de Saúde de Embu-Guaçu, na Região Metropolitana de São Paulo. Reportagem da revista Carta Capital revelou que, com o abrupto fim do Programa Mais Médicos, a cidade perdeu 16 doutores cubanos de uma só vez. Entre idas e vindas de profissionais brasileiros, a prefeitura conseguiu recompor metade da equipe.

Quatro meses depois, Embu-Guaçu é de novo espelho dos dramas da saúde pública no Brasil. A cidade tem 68,2 mil habitantes e está distante apenas 47 quilômetros da capital paulista. Vive basicamente do comércio e dos repasses do governo federal – recebe, por exemplo, verba extra para preservar os mananciais. Com o repasse unificado, tende a perder verba. Maria Dalva Amim resume de forma categórica: “Estamos desesperados”.

Talvez inspirado pelo miraculoso trilhão prometido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com a Previdência, o Previne Brasil garante incluir 50 milhões de brasileiros no SUS. O economista Francisco Funcia, ex-diretor da Associação Brasileira de Economia em Saúde, desconfia desse número. Vários estudos, aponta ele, mostram que as cidades tendem a subnotificar os atendimentos. Na letra da lei, todo o brasileiro precisa apresentar o cartão do SUS para dar entrada em hospitais ou postos de saúde, mas falta a muitos municípios a tecnologia necessária para repassá-los à base universal do sistema. “Não foi apresentado pelo governo nenhum estudo técnico que dê base a esse cálculo. Sem isso, nem sequer podemos afirmar que haverá perdas ou ganhos”.

Para o tesoureiro-geral da CNTS, Adair Vassoler, o Programa Previne é sequência do desmonte de direitos que o governo Bolsonaro começou a fazer com a reforma da Previdência. “Estamos vendo, a passos largos, um processo de perda de direitos. Menos recursos para o SUS significa atendimento precário, aumento de epidemias e perdas de vida. Este projeto de precarização da saúde pública proposto pelo governo obrigará a população a procurar atendimento na saúde privada. Não esquecendo que foi o ministro da Saúde de Bolsonaro que propôs cobrança de atendimento pelo SUS. Como profissionais de saúde repudiamos este ataque do governo ao SUS. O Sistema Único de Saúde pertence aos brasileiros. Tirar direitos da saúde é tirar vidas”, acrescenta.

Portaria sem aval do controle social – A mudança saiu com o aval dos gestores municipais, estaduais e federais, mas sem a aprovação do Conselho Nacional de Saúde. A proposta será discutida pela entidade em dezembro e, pela lei, não pode ser efetivada sem essa análise prévia.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva e outras 11 entidades do setor alertam, em nota, para o endosso do governo a um “SUS para pobres”. Um dos pontos mais controversos, segundo essas organizações, é que o novo programa deixa de priorizar o Estratégia Saúde da Família, cujo contato direto com a população contribuiu enormemente para a redução da mortalidade infantil. Cálculos da Abrasco indicam que, a cada aumento de 10% na cobertura do programa, cai 4,6% a morte de crianças de até 1 ano de idade.

O número de indicadores monitorados cairá de 720 para 21. Eles precisarão ser informados regularmente para que os municípios possam receber recursos federais. Entre eles estão a realização de consultas pré-natais e vacinação em crianças. As entidades contestam. “Considerando que o SUS é subfinanciado e por isso sua gestão encontra dificuldade para se aperfeiçoar. Apesar da política de austeridade fiscal, não se pode pensar em diminuição de recursos, seja o ano que for e em qualquer área do Ministério da Saúde”.

“A nova política de financiamento da atenção primária será executada em 2020, ano de eleições municipais. De modo que, se o critério de repasse dos recursos aos gestores da saúde não for objetivo, transparente e impessoal, poderá haver riscos de cooptação política, e devemos evitar toda forma de clientelismo”, explicam as entidades.

O grupo ressalta ainda que a proposta retira recursos de áreas urbanas que também sofrem com falta de recursos para a saúde. “Considerando que o SUS é subfinanciado, não havendo, pois, recursos sobrando em nenhum serviço, ainda que a gestão possa e deva ser aperfeiçoada, não se pode pensar em diminuição de recursos, seja a partir de que ano for e em qualquer área do Ministério, uma vez que os entes mais sobrecarregados com a saúde são os municípios e eles não suportarão nenhuma forma de redução de seus recursos, fato que viola o princípio do não haver retrocesso no custeio de direitos fundamentais”, observa.

A mudança da forma de financiamento da atenção primária à saúde ocorre pela primeira vez em 21 anos. De acordo com a carta do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, enviada à pasta comandada por Luiz Henrique Mandetta, a portaria fere “os critérios de rateio dos recursos da União para os demais entes federativos” estabelecidos no art. 17 da Lei Complementar 141, de 2012.

Subfinanciamento – O SUS sempre recebeu menos dinheiro que o necessário. O gasto médio mensal das três esferas com a saúde de cada brasileiro é de 104 reais, pouco mais da metade da média mundial – 6,8% contra 11,7% –, segundo a OMS. O baixo crescimento leva à baixa receita, que leva à menor capacidade de investimento em políticas públicas. “Tivemos dois anos de recessão a partir de 2014, depois o PIB cresceu perto de 1%, insuficiente para cobrir o rombo dos anos anteriores. Se você tem uma unidade de saúde aberta para atender a população, você não vai fechá-la”, explica Funcia.

Desde 2014, o orçamento federal para saúde, para o SUS, não repõe o valor da inflação, girando em torno de 220 bilhões de reais. Os gastos com a saúde não respeitam, porém, os limites inflacionários. “As despesas aumentam porque o PIB está caindo, e não porque estão de fato subindo”, completa.

Além disso, os custos com saúde são altamente dolarizados. Seringas, luvas, equipamentos e remédios. Tudo varia conforme o sobe e desce da moeda americana. Conforme a população fica mais velha e mais pobre, mais sobrecarregada se torna a saúde pública. Os efeitos começam a aparecer. Mesmo alcançando a meta de cobertura vacinal do sarampo de 2019, com 95% das crianças de 1 ano de idade imunizadas, o Brasil ainda enfrenta um surto da doença. Também há risco de nova epidemia de poliomielite. Os casos de sífilis explodiram: são 4.000% maiores do que oito anos atrás. Aumentou ainda a incidência de dengue, 600% de 2018 para cá. “Cortar despesas, neste cenário, é tirar direitos”, acrescenta Funcia.

Fonte: Com Carta Capital, Jornal GGN e CNS
CNTS

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