O plano B ao SUS
*Por Maíra Mathias
A intenção já vinha sendo anunciada – e provocando barulho – há algumas semanas, mas foi só na sexta-feira (5/8) que o ministro interino da Saúde, Ricardo Barros, deu o passo inicial para sua concretização. O titular da pasta escolheu uma data, o Dia Nacional da Saúde, para editar portaria que define que, em até 120 dias, uma proposta de plano de saúde “acessível”, novo nome para o que até então era chamado plano “popular”, será apresentada ao país. Independentemente do adjetivo escolhido, a ideia é alterar exigências mínimas de cobertura hoje vigentes para estimular as empresas operadoras de planos a oferecer produtos mais baratos para a população. O governo provisório argumenta que a medida vai desafogar os serviços públicos e gerar economia de recursos para o Sistema Único de Saúde.
Entidades como Conselho Federal de Medicina – CFM, Sociedade Brasileira de Pediatria e Rede Unida marcaram posição contra a proposta, se somando à Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco e ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec que, com base nas declarações anteriores do ministro, já haviam divulgado que pretendem entrar com ação na Justiça contra o governo caso a proposta vingue.
. Isso porque a proposta deve sair de um grupo de trabalho composto pelo Ministério, pela Confederação Nacional das Empresas e Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização – CnSeg e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. A Agência, contudo, deixou o governo em uma saia justa ao emitir nota ainda no dia 5 informando que não tinha conhecimento prévio sobre a criação do GT.
Para entender o que está em jogo, o Portal EPSJV conversou com dois especialistas na relação entre o Sistema Único e a saúde suplementar que apontam que a proposta, longe de desafogar ou desonerar, pode ser um plano B ao SUS.
A luta contra a cobertura reduzida – “A justificativa de desafogar o SUS é totalmente equivocada. É uma proposta das empresas, isso é muito claro. Essa proposta é reincidente no histórico da regulamentação dos planos de saúde. E é uma proposta ilegal”, aponta Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP.
Segundo ele, antes de 1998 – quando a lei dos planos foi aprovada – a saúde suplementar era terra de ninguém. “Por mais de 30 anos essas empresas atuaram sem nenhuma regra. A cobertura reduzida era a grande característica dos produtos que elas vendiam. Por exemplo, excluíam doenças infecciosas e cardíacas, órteses e próteses, fisioterapia. Os planos tinham segmentação de dias de internação, não atendiam internação em UTI até tantos dias. Esse caos total levou a uma grande reação na década de 1990”.
No contexto pós-ditadura, surgiu um movimento que exigia uma lei para regulamentar o setor, composto por organizações de defesa do consumidor, entidades médicas e entidades de portadores de patologias então excluídas dos planos, como os renais crônicos e HIV/Aids. Uma das grandes tensões no processo de regulamentação foi o fato de as empresas não aceitarem incluir na lei uma regra para uniformizar a cobertura dos planos.
Mais regras vieram em 2000, quando a ANS foi criada e estipulou um rol de procedimentos mínimos de cobertura. “As empresas de planos nunca engoliram essa legislação. E tensionam o tempo todo para que volte a ser como antes. E aí pode dar o nome que for: popular, acessível. É um plano de baixo preço em troca de cobertura reduzida”, diz.
Nova investida – Segundo Mario, as empresas chegaram perto de conseguir reverter essas restrições em duas situações. Em 2001, quando o governo Fernando Henrique Cardoso editou uma Medida Provisória instituindo o plano subsegmentado. “Os planos poderiam, de acordo com os serviços disponíveis naquela cidade, naquela região, dar ou não cobertura. Isso gerou uma grande mobilização, pressão no Congresso e a MP foi revogada”. Em 2013, continua ele, a proposta do governo Dilma Rousseff era expandir o mercado de planos populares através de subsídios públicos.
“E agora essa pauta volta pelas mãos de um ministro da Saúde que tem uma proximidade muito grande com esses interesses, ele teve sua campanha eleitoral financiada pelo setor. A novidade é que as empresas passaram da reivindicação à formulação. É uma formulação do setor privado, tanto que descaradamente se cria um grupo de trabalho passando por cima até da ANS. E olha que a Agência também tem uma proximidade grande com esse mercado, mas nem ela foi consultada”, situa.
Para o economista Carlos Ocké, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, a proposta cumpre um duplo papel para o governo neste momento. “Num contexto de recessão, de desemprego, de redução da renda média, e, portanto, de maiores dificuldades para a expansão do mercado de planos de saúde, do ponto de vista de um governo liberal ou neoliberal, essa proposta é a tentativa de criar um novo filão de mercado”.
O segundo ponto, de acordo com ele, se liga ao contexto político. “Cumpre um papel de legitimação. O consumo de plano de saúde se tornou um valor positivo na sociedade brasileira. Isso, inclusive, foi estimulado pelos próprios governos do PT. Agora, esse ministro joga essa proposta. É uma tentativa de se legitimar junto às classes populares”, diz.
E completa: “É uma proposta extremamente perversa porque trabalha com uma ideologia que é difundida, mas que é, digamos assim, uma falsa consciência. Porque apesar de ter se transformado em status, plano de saúde não resolve de forma concreta o problema de cobertura dos trabalhadores, das classes populares. E não desafoga o SUS, pelo contrário”.
Efeito rebote – Isso porque, segundo os especialistas, um plano “acessível” remeterá o atendimento mais caro e complexo de volta para o SUS. “Vai desafogar o que no SUS? Desafogar consultas e exames? Existe um gargalo nas especialidades, mas a grande questão que a perda de capacidade fiscal dos estados e municípios e da própria União traz é a diminuição da capacidade de alta e a média complexidades. O SUS está perdendo capacidade de cirurgias, os grandes hospitais do SUS estão fechando leitos e enfermarias por conta da diminuição de recursos. Planos que não cumprem a obrigação de dar uma assistência mínima sobrecarregarão o SUS”, afirma Mario Scheffer. “A clientela da medicina privada utiliza o SUS e vai continuar utilizando. Quando não dá conta no setor privado irá para o SUS sem nenhum tipo de planejamento, de racionalidade”, completa Carlos Ocké.
O economista rebate ainda os cálculos do ministro interino, que afirmou que o plano acessível permitiria colocar entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por ano no que ele vem chamando de “saúde pública”. “Esse número foi tirado da cartola, é um número mágico. Não tem nenhum estudo que indique isso, pelo contrário. Pode trazer custos administrativos para o SUS porque vai tornar difusa a racionalidade do público e do privado, vai onerar o gasto das famílias. É um grande negócio para as operadoras de planos de saúde”.
Planos baratos já existem – Segundo Scheffer, planos baratos já existem hoje no mercado de dois jeitos. Um é o plano ambulatorial, que a lei permitiu. “Hoje você pode vender plano só de consulta e exame”. Mas, segundo o professor, esse plano não ‘pegou’ no mercado: foi a opção de menos de 4% dos 58 milhões de pessoas que têm plano de saúde – seja coletivo ou individual. “Em São Paulo esse plano tem uma média de preço de R$ 100 a mensalidade para uma faixa etária de 34 a 39 anos”, informa ele.
O segundo tipo de plano barato que já existe é aquele que tem uma rede credenciada de serviços reduzida. “Há uma verdadeira multiplicação desses planos que a gente chama de falsos coletivos. Eles são baratos no preço, mas são uma arapuca para as pessoas. Hoje está explodindo a judicialização contra esses planos”, conta o especialista. De acordo com ele, de 2010 a 2015, cresceu quase cinco vezes o número de ações contra planos no Estado de São Paulo.
“Então o que é essa proposta? O que vai ser plano barato? Não fica muito claro. Seria uma cesta em que o consumidor teria que escolher entre ter ou não internação? Se tiver internação vai ter só de alguns tipos? Ainda não sabemos como isso vai se materializar. E existirá um problema seríssimo com a Justiça em operacionalizar isso, com a perspectiva de explodir ainda mais as ações judiciais contra as operadoras”, prevê.
E Mario Scheffer aponta mais consequências: com a redução da cobertura mínima, os médicos não terão condição, muitas vezes, de dar os meios diagnósticos e terapêuticos necessários para atender aquela necessidade de saúde. “Isso é muito sério, é uma questão ética. Não é à toa que os médicos começaram a se manifestar, já viram o quanto isso vai doer na autonomia e também no bolso porque plano de baixo preço vai diminuir honorário médico”. Carlos Ocké concorda: “Ao processo de concentração e centralização desse mercado, o estímulo aos planos baratos tende a intensificar o achatamento do salário dos profissionais de saúde”.
Além do plano popular, VGBL – O economista também chama atenção para uma passagem de bastão das entidades que representam os interesses do mercado que pode apontar mais mudanças, ainda pouco conhecidas. “Até então era a Confederação Nacional de Saúde quem vocalizava o setor. A grande novidade desse grupo de trabalho é a participação da CNSeg que, como o próprio nome diz, representa também empresas de seguros gerais, previdência privada e capitalização”.
Para ele, isso junto com a pista do ministro de que ele pretende mexer tanto no plano de saúde individual quanto no plano empresarial, aponta uma tendência de financeirização da saúde: “Provavelmente para o plano individual vai ser esse modelo subsegmentado, ou seja, um plano ambulatorial reduzido, com cobertura reduzida. Mas é preciso iluminar um pouco isso porque embora o foco esteja no plano popular, as pistas nos levam a acreditar que do ponto de vista do plano empresarial, é bem provável que surja a ideia do VGBL na saúde”, diz, citando a sigla para Vida Gerador de Benefícios Livres.
Desde 2011, a ANS anuncia a criação de um novo tipo de plano de saúde que une assistência médica e previdência privada. O apelo do produto é permitir acumular recursos em um fundo de capitalização individual que, em tese, ajudariam a custear os gastos com saúde na velhice. “Isso vai pressupor recursos públicos –provavelmente renúncia fiscal – e tem um mix de poupança financeira com assistência médica que é extremamente atrativo num primeiro momento, porque ele vende o seguinte: você vai fazer uma poupança e só vai usar se você ficar doente. Mas a probabilidade de um idoso ficar doente é muito grande. Na prática, quando precisar de certos procedimentos, vai ter que pagar do seu bolso porque o rol é muito limitado, além da instituição da franquia por uso”, explica.
Pressão internacional – Os especialistas ligam a pressão pela desregulamentação das regras da saúde suplementar no Brasil à entrada de empresas e investidores internacionais no mercado, sacramentada em 2015 com a aprovação da lei do capital estrangeiro. “O movimento da internacionalização da economia demonstra que uma estratégia muito clara do capital internacional é emplacar mudanças normativas, institucionais, fazendo com que a legislação dos países se torne mais favorável. Na verdade, eles querem o quê? Acumular ao máximo e reduzir qualquer tipo de restrição”, afirma Ocké.
Mario Scheffer completa: “O capital estrangeiro é volátil, ele quer rentabilidade. E a rentabilidade estará nesses produtos populares que não têm compromisso nenhum com a assistência à saúde, o compromisso é com o faturamento imediato. É a volta do plano do copo d´água e aspirina, e as pessoas vão ter uma falsa ilusão que terão um plano de saúde”.
*Maíra Mathias é jornalista da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV).
Fonte(s): Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)