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Marielle Franco: vítima duas vezes

Quando alguém morre, nas circunstâncias que forem, as pessoas costumam respeitar a dor de sua família, deixar que seus amigos honrem a memória do falecido, demonstrar um pouco de solidariedade humana. Ninguém com o mínimo senso de convivência social se dedica a ofender quem perdeu a vida, muito menos inventar fofocas para sujar sua memória. Infelizmente, não é o que ocorre no Brasil após a morte violenta da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, na quarta-feira, 14.  

Em resposta à comoção que tomou as ruas e as redes sociais devido à execução da militante dos movimentos feminista, negro e LGBTT, grupos e redes de extrema direita produziram e bombardearam conteúdo fraudulento na forma de textos, vídeos e memes, tentando associar Marielle ao crime. E contaram com a natureza das redes sociais para que isso ocorresse.

O WhatsApp se tornou um dos principais canais de distribuição de conteúdo visando à desinformação, manipulação e hiperpartidarização e notícias falsas. Por lá, circulou uma corrente com boatos de que Marielle seria casada com uma liderança do tráfico de drogas e teria sido eleita com a ajuda de uma facção criminosa – farsas que foram denunciadas por plataformas de checagem de notícias e veículos de comunicação.

Contudo, ao serem reproduzidas pela desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marilia Castro Neves, e pelo deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), através de suas contas em redes sociais, a história não apenas foi mais longe como ganhou validação. Afinal, ambos são figuras públicas, membros dos Poderes Judiciário e Legislativo.

Frutos do ataque – Infelizmente, a mania brasileira de culpar a vítima não fica apenas nas redes sociais, está presente também no Judiciário brasileiro. Na justiça brasileira, não é incomum que mulheres sofram descaso ou, pior, uma dupla condenação.

Um exemplo da justiça machista segundo revelou reportagem da revista Galileu, é o caso de Tatiane, que foi condenada a 24 anos de prisão por omissão porque estava trabalhando quando seu marido matou o filho caçula. O Ministério Público entendeu que Tatiane tinha de ter previsto e impedido a morte do caçula pelo próprio pai – um laudo médico disse que as agressões teriam começado um dia antes. Amilton é viciado em drogas, tinha antecedentes por tráfico e um histórico de agressões contra a mulher. Mas até aquele momento não havia registros de maus-tratos nos filhos. Tatiane perdeu a guarda dos outros dois filhos em maio e foi levada a júri popular em novembro do ano passado. Sete juradas de meia-idade a condenaram a 22 anos de prisão. Amilton pegou uma pena de 42 anos pela morte, mas foi absolvido do crime de estupro.

“Imagine o caso contrário: um pai que estivesse trabalhando no momento em que a mãe, que está em casa cuidando dos filhos, mata um deles. Ele sequer seria indiciado”, diz a defensora pública Tatiana Kosby Boeira, à frente do caso. Em tese, crimes por omissão de cuidado, em que os pais são indiciados pelo que não fizeram, podem recair tanto sobre o pai quanto sobre a mãe. Mas um estudo apresentado no 13º Women’s World Congress, em 2017, mostra que, na prática, só as mães vêm sendo criminalizadas por esse tipo de delito.

Maria* ficou com as marcas de um estupro no corpo, mas seu algoz foi absolvido porque desembargadores disseram que ela não gritou. A desembargadora Bernadete Coutinho Friedrich relatora do caso, desconsiderou o exame de corpo de delito e pôs em dúvida o depoimento da vítima. Concluiu que a vítima não gritou por socorro e que teria justificado essa “omissão” para não ficar falada na comunidade caso descobrissem o abuso.

Até nas mais altas cortes do país há misoginia. O ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Marco Aurélio Mello, nomeado pelo primo na década de 90, então presidente Fernando Collor, é conhecido por ter decisões polêmicas. Numa decisão de 2006, defendeu a inocência de um homem que estuprou uma menina de nove anos. O acusado era casado com a tia da criança.

Aos 12, ela engravidou. O Supremo manteve a condenação, mas o ministro foi contra. Alegou que o homem havia “assumido” o bebê e que passaria a viver em “união estável” com a sobrinha, apesar de a idade mínima para o casamento no Brasil ser de 16 anos com autorização dos pais. Mello se amparou no artigo 107 do Código Penal, que perdoava o estuprador caso ele casasse com a vítima, ignorando inclusive o limite de idade. A regra havia caído em 2005.

Os ataques via boatos em redes sociais contra Marielle Franco, portanto, não são aleatórios ou resultado apenas de redes de ódio e de intolerância. Mas fruto de uma justiça machista, da miséria e da violência que abala as cidades, da herança nefasta de um sistema político tradicional corrupto até a medula, cujos representantes desfrutam de escandalosos privilégios. Dizem falar em nome da moral, da segurança pública ou até, em um traço de humor irônico, dos valores cristãos e do liberalismo.

Quando uma figura pública é muito grande, não basta matar seu corpo físico. É necessário destruir sua autoridade e credibilidade para reduzir a influência de seu exemplo e de suas ideias.

A CNTS se soma aos protestos contra o covarde assassinato da vereadora e de seu motorista, e de muitas outras Marielles Brasil afora, que lutam por um país mais justo e menos desigual, pela a ampliação de direitos sociais e trabalhistas. (Revista Galileu, El País, UOL e Carta Capital)

CNTS

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