Desemprego e avanço da pobreza podem recolocar Brasil no Mapa da Fome
Sim, o Brasil pode retornar ao Mapa da Fome. Por mais indignação que essa afirmativa possa provocar, principalmente pelo fato de o país ter deixado essa “lista negra” há três anos, a crise econômica, o desemprego, a falta de incentivo a programas de segurança alimentar e nutricional e as restrições orçamentárias impostas pelo governo podem reinclui-lo na temerosa lista da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
De 2014 a 2016, o número de pessoas em extrema pobreza no Brasil saltou de 5.162.737 para 9.972.090; no mundo, de 2015 para 2016, os conflitos armados e crise econômica provocaram crescimento da fome, atingindo mais de 800 milhões de pessoas. O assunto, e sua indissociável relação com a pobreza, foram debatidos na aula inaugural da ENSP/Fiocruz, na segunda-feira, 12 de março.
“Enfrentar a fome é enfrentar a pobreza extrema. Na medida em que se coloca a questão da alimentação no âmbito da saúde pública, trilhamos o caminho certo”, admitiu o economista Francisco Menezes, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, ao mencionar o evento na instituição. A Escola Nacional de Saúde Pública também recebeu Daniel Carvalho de Souza, da Ação da Cidadania, e Maria Emília Pacheco, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase.
O Natal sem Fome
O filho do sociólogo Betinho admitiu que o retorno da campanha Natal Sem Fome tem um “sabor amargo” de derrota. A última ação do programa havia ocorrido em 2005, mas 2017 foi o ano em que um novo movimento foi criado para auxiliar os servidores do Estado do Rio de Janeiro, que estavam há meses sem receber salários, e também marcou a retomada da arrecadação de alimentos para o Natal. “A segurança alimentar deve ser uma política de Estado. O Natal Sem Fome nunca teve pretensão de acabar com a fome no Brasil, mas buscava deixar claro que, se uma organização não-governamental tinha condições de arrecadar alimentos e doá-los à população, o poder público teria possibilidades de fazer muito mais”, protestou.
Dessa forma, a campanha retornou ano passado com a meta de arrecadar 500 toneladas de alimento. Mesmo em tempos de crise, a iniciativa obteve grande adesão da população, artistas e empresas e acumulou 900 toneladas. Em 2018, a ação que será relançada com a meta de reunir 1 milhão de toneladas de alimentos, celebrará os 30 anos da Constituição Federal. “Estamos dispostos a trabalhar pesado porque consideramos a volta ao Mapa da Fome uma vergonha”, admitiu Daniel revelando que a Ação da Cidadania está em acordo com a FAO para realização do Natal sem Fome em algum país africano de língua portuguesa, provavelmente Moçambique.
A volta ao Mapa da Fome
Ao apresentar os motivos que levaram o país a sair do Mapa da Fome em 2014, Francisco Menezes fez questão de ressaltar que esse feito não significava o fim da fome no Brasil, mas apontava o sucesso das políticas públicas e o fim da concepção da fome como fenômeno natural. “Em 2013, a insegurança alimentar grave chegava a 3,6% da população. Ninguém deseja esse número de pessoas passando fome, em situação de vulnerabilidade, mas já significava um índice inferior ao enfrentado pelo país – o índice determinado pela FAO para determinar a situação grave de fome é 5%. O que definiu esse avanço? Uma política de desenvolvimento com inclusão social, ampliação do emprego formal, a correção do salário mínimo e incentivo aos programas de transferência de renda. Outro ponto foi o apoio a uma série de ações e programas de segurança alimentar e nutricional”, reconheceu.
De acordo com o representante do Ibase, a situação extrema de pobreza acomete 4,2% da população brasileira, com maior concentração no nordeste (7,9%) e norte (6,2%) do país. “A extrema pobreza tem raça e sexo. O desmonte das políticas de assistência social vitima a população mais pobre; e a situação é de agravamento. Denunciamos a possibilidade de o Brasil entrar no mapa da fome. Não pode haver ajuste fiscal que viole os direitos humanos como a Emenda do teto de gastos. Deixo aqui duas perguntas: Que país teremos se prosseguirmos assim? Tudo isso aconteceria se a democracia brasileira tivesse sido preservada? Essas questões indicam qual deve ser nosso campo de luta”, refletiu.
“A comida é cara e de má qualidade”
O custo dos alimentos, a qualidade do que se come e a ausência de um sistema de abastecimento alimentar que incorpore as diferenças do país foram questionados pela antropóloga Maria Emília Pacheco, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – Fase, na última fala da aula inaugural da ENSP. “A comida é cara, de má qualidade e há grande aumento no consumo dos produtos ultra processados, que impactam a incidência das Doenças Crônicas não Transmissíveis. Para reduzir o consumo desses alimentos, é necessário pensar na produção, combater os desertos alimentares. As pessoas não têm acesso ao alimento de qualidade porque não há locais de abastecimento”.
A pesquisadora criticou duramente o plano diretor da cidade do Rio de Janeiro, que não reconhece a área rural do município, e a proposta de expansão da cidade para a região oeste – onde encontram-se os produtores agrícolas – em virtude do acelerado processo de especulação imobiliária. Outro ponto mencionado foi a política tributária. “O Brasil concede isenção fiscal para os agrotóxicos. Há necessidade de pressionarmos o STF para reverter essa isenção”.
Emília apresentou dados do Ipea sobre o crescimento da produção agrícola no país, mas também lembrou ser necessário questionar qual produção é essa; a quem se destina; quais impactos traz para a saúde da população. “A terra é ocupada com a expansão de monoculturas, no momento em que deve haver a diversificação da produção”, afirmou, para completar em seguida: “há como garantir a alimentação por meio da agricultura familiar, da agricultura camponesa. A produção agrícola deve ser repensada de forma a articular a qualidade do alimento à saúde!”.
A convidada finalizou destacando a importância de a terra readquirir sua função social. “A terra está cada vez mais distante do povo, do produtor, e é cada vez mais vista como mercadoria. É grave a situação. O Brasil marcha para trás nesse quesito, mas temos que valorizar iniciativas que tragam essa discussão a público, justamente como estão fazendo. Se não houver essa reorientação, não teremos como combater a fome e garantir a produção de alimentos de qualidade”, lamentou.
Mesa de abertura
A mesa de abertura da aula inaugural da ENSP foi composta pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, pelo diretor da ENSP, Hermano Castro, e pela vice-diretora de Ensino, Lúcia Dupret. Hermano disse que a fome é a base estruturante das violências e, por isso, deve ser resolvida de imediato. “A Fiocruz cumpre um papel importante ao trazer esse tema para reflexão. A resposta não é a intervenção militar, não é o agronegócio. Existem caminhos para alimentação saudável, para incentivo à agricultura familiar. Esse tema perpassará a formação dos alunos nessa instituição”.
A presidente da Fiocruz destacou o papel da ENSP enquanto instituição de saúde, ciência e cidadania por trazer um tema tão relevante para abertura do ano letivo. “Também é nosso papel apontar caminhos para o futuro, desenvolver pesquisas, teses e estudos para contribuir nessa questão”.
O momento de grande emoção foi quando a produtora agrícola Rita, representando os produtores da Feira Agrícola Josué de Castro, promovida pela ENSP, pediu a fala. “Como a Fiocruz é uma instituição de saúde, não haveria espaço melhor para uma feira de produtos orgânicos. A ENSP e o Poli nos abriram as portas. Plantamos sem veneno, trazemos nossos produtos frescos e queremos dizer que esse país tem jeito. A fome voltou. Por que voltou? Por irresponsabilidade dos políticos, de quem está lá em cima. Não de quem está aqui no campo. Temos direito a essa nação, e a terra está sendo retirada das nossas mãos. “Se o campo não planta, a cidade não janta.” Antes das falas de abertura, houve a exposição do vídeo Brasil, um país que tem fome, produzido pela Coordenação de Comunicação Institucional da ENSP. (Fonte: Informativo ENSP/Fiocruz)