Como garantir acesso à Justiça diante da reforma trabalhista

Jorge Luiz Souto Maior* e Valdete Souto Severo**

Esclarecemos desde logo que reiteramos a nossa avaliação de que a reforma trabalhista, levada a cabo para atendimento dos interesses do grande capital, é ilegítima, por ter sido mero instrumento de reforço dos negócios de um setor exclusivo da sociedade, o que, além disso, desconsidera a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, como preconiza a OIT, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático que deve preceder a elaboração, discussão e aprovação de uma lei de tamanha magnitude, ainda mais com essa intenção velada de afrontar o projeto do Direito Social assegurado na Constituição Federal.



Por ser ilegítima, a Lei 13.467/17, que resultou da reforma, não deve ser aplicada, sob pena de se conferir um tom de normalidade ao grave procedimento em que se baseou, que melhor se identifica como um atentado à ordem democrática e como uma ofensa ao projeto constitucional baseado na proteção da dignidade, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da prevalência dos Direitos Humanos, da função social da propriedade, da melhoria da condição social dos trabalhadores, da política do pleno emprego e da economia regida sob os ditames da justiça social.

Os profissionais do Direito, portanto, por dever funcional e também ditados por sua responsabilidade enquanto cidadãos que respeitam a ordem constitucional, devem rejeitar a aplicação da Lei 13.467/17.

Ao mesmo tempo, o momento representa uma oportunidade para a classe trabalhadora avaliar quais foram as dificuldades que experimentou para a compreensão plena do momento vivido e que inviabilizou uma melhor organização e o incremento de uma resistência mais ampla e eficaz à reforma.

A presente situação permite, ainda, que se possa refletir sobre os limites das apostas feitas no Direito como impulsionador de mudanças reais e concretas na realidade para o desenvolvimento de uma sociedade efetivamente melhor e justa, pois o retrocesso imposto foi justificado pelo fato de que a compreensão social do Direito do Trabalho estava efetivamente avançando.

Não se pode, igualmente, negar o debate paralelo, de natureza político-partidária, que se instaurou a propósito do tema. Neste sentido, muitos visualizaram a contrariedade ao projeto de lei como uma forma de auferir dividendos eleitorais, o que desmotivou o advento de uma resistência mais contundente. Agora que a derrota no processo legislativo se consagrou e a reforma se transformou em lei, a par de continuarmos disseminando a compreensão em torno da ilegitimidade desta, para efeito de sua rejeição integral, o certo é que não podemos apenas realçar ou até reforçar os prejuízos da reforma, por meio da assimilação das interpretações que evidenciam seus malefícios. Isso serviria, meramente, para entrar no jogo político eleitoral ou, de forma mais idealista, pretender que algum tipo de impulso revolucionário possa advir daí. E, por outro lado, pode acabar facilitando a vida dos patrocinadores da reforma, no seu propósito de aumentar lucros por meio da redução de direitos trabalhistas.

Por isso, o exercício de buscar interpretações juridicamente possíveis da Lei 13.467/17, para coibir seus efeitos mais nefastos, o que é bastante complexo, envolto mesmo em contradições, talvez não agrade a muitos que interagem com esse assunto por meio de interesses não revelados.

Certamente, também não nos agrada. O problema é que enquanto se levar adiante, como única via, no campo jurídico, a aposta na declaração de ilegitimidade – que fica mais distante, quando percebemos o quanto o Direito se integra às estruturas de poder –, o sofrimento dos trabalhadores no dia a dia das relações de trabalho só aumentará (e nada mais).

Assim, sem abandonar essa perspectiva de rejeitar, por completo, a aplicação dessa lei, sem abandonar o ideal social de buscar racionalidade e formas de superação de um modelo de sociedade que já deu inúmeras mostras de suas limitações enquanto projeto para a humanidade, e sem desprezar o efeito eleitoral que deve advir dessa tentativa político-econômica de desmonte social, faz-se necessário aos magistrados e juristas, lidando, no plano limitado do imediato, até para cumprimento do dever funcional de fazer valer a ordem constitucional e os princípios dos Direitos Humanos, buscarem os fundamentos jurídicos que impeçam que a Lei 13.467/17 conduza os trabalhadores, concretamente, à indulgência e à submissão.

Isso não significa, de modo algum, salvar a lei ou os seus protagonistas, que devem, efetivamente, receber um julgamento histórico pelo atentado cometido, até porque é somente com muito esforço e extrema boa vontade, impulsionada pela necessidade determinada pela derrota da aprovação da lei, que se pode chegar a esse resultado de obstar os efeitos destruidores, de tudo e de todos, contidos potencialmente na Lei 13.467/17.

Essa iniciativa, ademais, tem o mérito de forçar os defensores da aprovação da lei da reforma, que fundamentaram sua postura no argumento de que esta não retiraria direitos e que não geraria prejuízos aos trabalhadores, a revelarem a sua verdadeira intenção, quando se virem na contingência de terem que, expressamente, rejeitar as interpretações que, valendo-se da ordem jurídica, preservam os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Ao terem que recusar essas interpretações, deixarão cair as máscaras, revelando os objetivos da reforma: favorecer os empregadores e fragilizar ainda mais os empregados.

Esse exercício interpretativo, portanto, permite recolocar as ideias e os personagens em seus devidos lugares e serve, ao mesmo tempo, para reforçar o argumento pela ilegitimidade plena da lei, pela declaração plena de sua inconstitucionalidade e, até mesmo, para reanimar a luta pela sua revogação. Além disso, contribui para o devido julgamento histórico dos atores da reforma.

E trará, ainda, o benefício de desvendar que essa iniciativa destrutiva não é uma obra que pertence exclusivamente a Temer e seus companheiros. Afinal, historicamente, muito já vinha sendo feito, em termos hermenêuticos, para negar vigência às garantias constitucionais asseguradas aos trabalhadores e às trabalhadoras. Lembre-se, por exemplo, que a jornada 12×36 já vinha sendo admitida, assim como o banco de horas (apesar da contrariedade ao disposto no art. 7º, XIII, da CF); que o direito de greve vinha sendo reiteradamente desrespeitado (fazendo-se letra morta do art. 9º da CF); e que não havia nenhum movimento jurisprudencial para conferir eficácia ao inciso I do artigo 7º da CF, com relação à garantia contra a dispensa arbitrária.

Aliás, esse embate técnico-jurídico toma ares de urgência, na medida em que os autores da reforma, prevendo as resistências jurídicas e sabendo, portanto, que a aprovação da lei foi apenas o primeiro passo, estão prontos para dar novas cartadas e uma delas é manter a Justiça do Trabalho sob a ameaça de extinção.

O risco que se corre, sério e iminente, é o de se tentar agradar ao poder econômico, que, atualmente, controla a vida nacional sem a intermediação da política, e, assim, não só acatar os termos da reforma, como admitir os sentidos restritivos de direitos e até ir além, propondo compreensões teóricas que superam as regressões contidas na lei, assumindo-se, inclusive, o valor que os próprios políticos e os defensores da “reforma” em nenhum momento tiveram que assumir publicamente: a redução dos direitos dos trabalhadores como consequência “bem-vinda” da incidência da Lei nº 13.467/17 no Direito do Trabalho.

Mas isso é um erro técnico, como demonstrado no presente texto, e não representa nenhum tipo de preservação da Justiça do Trabalho, até porque, na essência, eliminando-se a preocupação com o princípio que fundamenta o Direito do Trabalho, que determina a própria razão da existência de uma Justiça especializada, voltada a expressar valores sociais e humanos que impõem limites ao poder econômico, o que se estará dizendo é: “acabemos nós mesmos com a Justiça do Trabalho antes que outros o façam”.

Aliás, outro risco que se corre – e este a sociedade devia perceber, urgentemente – é que os políticos que encaminharam essa reforma, buscando obter imunidade nas acusações de corrupção, tentem emplacar, agora, o argumento de que as eleições podem travar a economia e, assim, aprofundarem o Estado de exceção e o estágio de falência democrática, levando consigo também os direitos civis e políticos.

Vide, a propósito, a chamada da reportagem publicada no jornal Valor Econômico, edição de 21/06/17: “Eleição de 2018 ameaça reformas, dizem analistas” [i].

Fato é que sem a construção de argumentos jurídicos que destruam os caminhos das perversidades da Lei nº 13.467/17, muitos passarão simplesmente a aplicá-la, motivados pela ausência de reflexão, pela premência de tempo ou mesmo pelo excesso de trabalho, e seguirão lesando o projeto constitucional de proteção dos trabalhadores.

1. Não aplicar, aplicando 

Não temos dúvida de que o conjunto da reforma, em mais de 200 dispositivos, é todo ele voltado ao atendimento dos interesses dos empregadores e, mais especificamente, aos grandes empregadores, e o exercício proposto, de atividade interpretativa, não altera esse dado, que, ademais, já consta, muito claramente, de todos os registros históricos.

Então, ao se chegar a efeitos benéficos ou não prejudiciais aos trabalhadores pela via da interpretação e da integração da Lei 13.467/17 ao conjunto normativo, ao qual se integram os princípios jurídicos, não se está extraindo aspectos positivos da reforma e sim, concretamente, impedindo que aqueles efeitos pretendidos (mas não divulgados abertamente) pelos seus elaboradores sejam atingidos.

O método utilizado para tanto, dentro dessa via intermediária da preocupação com os resultados imediatos, não é, como dito, o de rejeitar a aplicação da lei, mas o de impedir que os efeitos que se pretendiam atingir com ela sejam atingidos, o que, no plano do real, pode ser um não aplicar.

Enfim, parafraseando o método de raciocínio desenvolvido pelo mestre Márcio Túlio Viana para enfrentar, na década de 90, a legislação e os argumentos neoliberais que almejavam, já naquela época, destruir o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, o que se promove é um “não aplicar, aplicando”.

Aliás, como já manifestado em outro texto, foram os próprios argumentos apresentados como fundamentos da reforma que inauguraram essa (ir)racionalidade, pois os dispositivos da lei atendem exclusivamente aos interesses dos empregadores e os fundamentos trazidos foram no sentido da preocupação com a melhoria da condição de vida do conjunto dos trabalhadores, incluindo os excluídos, sem retirada de direitos. Assim, ao se aplicar os dispositivos da lei, não se aplicam os seus fundamentos. Trata-se, portanto, igualmente, de um não aplicar, aplicando.

Claro que esses fundamentos são falsos e ao se aplicar a lei, rebaixando o patamar de direitos dos trabalhadores e aumentando as margens de lucro dos empregadores, o que se teria é uma perfeita harmonia entre os objetivos da lei e os efeitos por ela produzidos. Mas como os fundamentos retoricamente utilizados para a sua aprovação foram os da proteção dos trabalhadores, torna-se possível aplicar a lei em consonância com esses fundamentos, os quais, ademais, se enquadram nos fundamentos clássicos do Direito do Trabalho e aí o que se terá como resultado é um não aplicar dos objetivos reais pretendidos pela reforma, aplicando a lei com suporte em seus fundamentos retóricos.

Desse modo, por exemplo, se o atual texto do artigo 8º pretende impedir que “súmulas e outros enunciados de jurisprudência” restrinjam direitos, tem-se o argumento definitivo e necessário para não mais aplicar as tantas súmulas que contrariam normas constitucionais. E se o juiz deve examinar a norma coletiva atentando para as regras do Código Civil, a boa-fé objetiva, a transparência, a lealdade, a ausência de abuso de direito serão parâmetros obrigatoriamente observados juntamente com a norma do art. 1.707, que impede cessão, compensação ou renúncia de crédito alimentar.

Da mesma forma, se o trabalho intermitente foi criado para tirar da informalidade trabalhadores que não atuam em tempo integral, devido a sazonalidade ou temporariedade da demanda do serviço, elimina-se o fundamento para negar o vínculo de emprego de trabalhadoras domésticas em conformidade com o número de dias que trabalham por semana.

Ou seja, o que pretendemos demonstrar é que a tentativa de desconfigurar o Direito do Trabalho por meio da integração à CLT de uma série de normas que a contrariam, encontra limite no próprio procedimento atabalhoadamente adotado. A aplicação dos artigos 9º, 765, e 794 da CLT, dentre outros, que foram preservados na “reforma”, assim como de todos os demais textos constitucionais e legais que estabelecem os limites da exploração do trabalho pelo capital, neutraliza o caráter destrutivo da Lei 13.467/17.

Antes de abordamos os aspectos processuais propriamente ditos, vejamos, para melhor compreensão, como, concretamente, esse método interpretativo incide sobre alguns artigos da Lei 13.467/17.

a) Redução do intervalo para 30 minutos

Um ponto muito discutido na reforma foi o da possibilidade de redução do intervalo de uma hora para trinta minutos, por meio de negociação coletiva, nos termos do atual inciso III, do art. 611 da CLT, segundo o qual a “convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: (…) III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas”.

A primeira questão a ser desvelada é a contradição entre a lei e um de seus fundamentos, que é o de estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado. Ora, é a lei que está ditando o que pode ser negociado, então o que prevalece, mesmo aí, é a lei e não o negociado. Além disso, a lei, nos mesmos moldes do que fazia a “velha CLT”, fixou os limites da negociação. No caso, o intervalo deverá, por lei, ser de, no mínimo, 30 (trinta) minutos. E, como o fundamento apresentado para a aprovação da lei, foi o de que essa redução seria para beneficiar o empregado, é necessário que algumas condições sejam satisfeitas para que essa redução possa ser considerada juridicamente válida (embora, do ponto de vista do ideal jurídico, já não passaria pelo crivo constitucional, que prevê a redução dos riscos à saúde como um direito fundamental dos trabalhadores): 1) que haja condições efetivas para que o intervalo seja cumprido e se destine, integralmente, àquela que se disse tenha sido a sua finalidade. Assim, não se poderá considerar atingida a dita finalidade da norma se o trabalhador tiver de ficar 10 minutos esperando em fila para poder se alimentar, ou gastar boa parte do tempo do intervalo se deslocando do posto de trabalho até o local de alimentação, pois, nesse caso, o ato de se alimentar será mais um transtorno do que uma satisfação (embora seja, de todo modo, uma necessidade); 2) que haja redução do tempo total de permanência do empregado no ambiente de trabalho. É incompatível com o objetivo da norma o ato de submeter o trabalhador, com intervalo reduzido para 30 minutos, à execução de tarefas em sobrejornada.

Acrescente-se que a supressão do intervalo já reduzido não equivale à supressão do intervalo de uma hora, conforme regulado no art. 71 da CLT, cujo caput se mantém com a mesma redação. A supressão do intervalo reduzido equivale à invalidação do acordo de redução, vez que desatende à dita finalidade da redução. Assim, diante da invalidação, prevalece a regra geral do intervalo de uma hora e a necessidade de indenização pela sua supressão, que não elimina a indenização por dano moral, dado o notório sofrimento a que se submete uma pessoa por trabalhar durante uma jornada superior a 06 (seis) horas sem a possibilidade de uma alimentação adequada a qualquer ser humano e sem descanso.

Aliás, desse raciocínio, estabelecido no contexto da “reforma”, decorre a extração da cláusula geral da prevalência da lei sobre o negociado descumprido, ou seja, o desrespeito a uma norma fixada em convenção coletiva, que se pretenda seja prevalente sobre a lei, traz como efeito a aplicação não da norma desrespeitada, mas da lei que pretendeu substituir, pois a norma foi justificada pelo efeito de conferir ao trabalhador uma melhor condição de trabalho e de sociabilidade e não para diminuir o custo da ilegalidade.

Mas, muito provavelmente, os defensores da reforma rejeitarão essa interpretação e dirão que uma vez reduzido o intervalo para 30 minutos por negociação coletiva o eventual descumprimento será o da norma já modificada pela negociação. No entanto, com este resultado, a negociação estará funcionando apenas para beneficiar os empregadores que não concedem intervalo para os seus empregados, reduzindo, matematicamente, o valor da indenização (nada mais).

Aliás, é bom que se diga, todas as alterações das regras sobre a jornada de trabalho, que, certamente, buscam permitir uma maior exploração do trabalho pelo capital, tentando afastar os limites constitucionais, para além de evidentemente contrariarem a norma do art. 7º da Constituição, encontram restrição no texto da própria reforma. Basta que se confira efetividade concreta à promessa contida no art. 611-A, quando diz que as cláusulas de negociação em relação à jornada devem respeitar os limites constitucionais ou o art. 611-B, que textualmente determina a observância das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho (inciso XVII). Assim, mesmo com outra norma da própria Lei nº 13.467/17 dizendo o contrário, não haverá como, por aplicação da ordem jurídica vigente, legitimar jornada que ultrapasse oito horas por dia, que permita horas extraordinárias habituais ou que eliminem períodos de descanso.

b) Trabalho da gestante em atividade insalubre e direito à amamentação

Outro ponto bastante discutido foi o do não afastamento obrigatório da gestante em atividades insalubres em graus médio e mínimo, conforme previsão do art. 394-A, segundo o qual “Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de: I – atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar a gestação; II – atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a gestação; III – atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a lactação.”

Como foi dito na defesa da aprovação da lei, o propósito não era prejudicar a empregada gestante.

Nos termos propostos, a empregada somente será afastada de atividades insalubres em grau médio e em grau mínimo com apresentação de atestado. Em tal caso, poderá, a critério do empregador, ser transferida para outro local na empresa considerado salubre, ainda que a dificuldade concreta seja a da aferição real da insalubridade.

Ora, se o propósito era proteger a saúde das trabalhadoras e do nascituro, o que se deveria fazer era criar norma objetivando a eliminação da submissão a atividades insalubres. No entanto, bem ao contrário, o que a reforma fez foi propor a possibilidade de exposição da gestante e do seu filho à situação de dano efetivo à saúde.

Na exposição de motivos do projeto de lei afirmou-se que sem essa possibilidade a empregada seria prejudicada porque perderia o adicional. Ora, a lei não diz que a gestante perde o adicional se não puder trabalhar no ambiente insalubre. O adicional, portanto, está garantido. O que diz a lei é que para se afastar do trabalho em atividade insalubre em graus médio e mínimo a empregada deverá apresentar atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, que “recomende o afastamento durante a gestação”, e procedendo da mesma forma, em atividades insalubres de qualquer grau, durante a lactação.

E todos disseram que o propósito não era prejudicar a empregada e o seu filho. Mas sabendo-se que a empregada que apresentar tal atestado poderá ser discriminada, a tendência é que as mulheres não os apresentem, o que não elide a ocorrência de danos concretos para o feto e para a gestante. Assim, considerada a dita finalidade da lei, esta somente poderá ser considerada atendida se a empregada apresentar atestado que comprove, cientificamente, que as condições reais do trabalho não resultarão prejuízo para si e para seu filho, valendo o mesmo raciocínio para a amamentação, na forma do § 2º do art. 396, da CLT.

Igualmente, os defensores da reforma rejeitarão essa interpretação e dirão que basta a ausência do atestado para que se presuma que a saúde da gestante, da lactante, do nascituro e do filho está assegurada, mas vale perceber que de uma afirmação de que a lei não causaria prejuízo às trabalhadoras já se estaria passando para o estágio da mera presunção, sem qualquer base empírica.

c) Extinção do vínculo e “quitação” de direitos

A Lei 13.467/17 tentou facilitar as dispensas coletivas de trabalhadores, fazendo uma equiparação – inconcebível do ponto de vista da realidade fática – entre dispensas individuais e coletivas, conforme constou do art. 477-A: “As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”.

A equiparação, no entanto, partiu de um pressuposto jurídico equivocado de que as dispensas individuais podem ocorrer sem necessidade de apresentação de justificativa ao empregado. No entanto, a Constituição é muito clara ao ter assegurado aos trabalhadores o direito à relação de emprego protegida contra a dispensa arbitrária (art. 7º, I).

Por isso mesmo, a norma do art. 477-A da CLT pode ser interpretada / aplicada para o efeito de finalmente reconhecermos a todas as espécies de despedida, individuais ou coletivas, o dever de motivação por parte do empregador, sob pena de nulidade, na forma do art. 7º, I, da Constituição e da Convenção 158 da OIT. Essa norma internacional, que pode ser utilizada como fonte formal do direito do trabalho seja por força do art. 8º, seja pela literalidade do art. 5º, § 2º, da Constituição (Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte), estabelece o dever de motivação para o ato da despedida.

Do mesmo modo, o conteúdo do art. 477-B, quando estabelece que “Plano de Demissão Voluntária ou Incentivada, para dispensa individual, plúrima ou coletiva, previsto em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, enseja quitação plena e irrevogável dos direitos decorrentes da relação empregatícia, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes” terá de se submeter ao crivo do Poder Judiciário trabalhista e mesmo ao conceito jurídico de quitação, tal como deverá ocorrer com a regra do art. 507-B, segundo o qual “É facultado a empregados e empregadores, na vigência ou não do contrato de emprego, firmar o termo de quitação anual de obrigações trabalhistas, perante o sindicato dos empregados da categoria”.

Aqui o legislador, inclusive, demonstrou desconhecimento quanto aos institutos jurídicos referidos. Ora, quitação é instituto jurídico específico que só se obtém mediante pagamento. Não há quitação como decorrência de renúncia ou transação. Os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e somente se pode dar quitação de dívida efetivamente paga e nunca com relação a direitos sem que estejam relacionados a fatos concretos, que tenham sido devidamente discriminados e cuja representação monetária não esteja matematicamente demonstrada, como acontece, ademais, em qualquer dívida de natureza civil.

Então, não tem qualquer valor jurídico uma declaração do trabalhador, estabelecida em TRTC, em PDV ou “termo de quitação anual”, no sentido de que todos os seus direitos, genericamente considerados, foram respeitados pelo empregador.

É a própria Lei 13.467/17 que exorta os juízes do trabalho a considerarem o Código Civil como parâmetro para a interpretação e aplicação de normas trabalhistas. Pois bem, a quitação tem seu conceito estabelecido no artigo 320 do Código Civil, segundo o qual “a quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante”. E, conforme art. 324 do Código Civil, “ficará sem efeito a quitação assim operada se o credor provar, em sessenta dias, a falta do pagamento”.

Lembre-se, ainda, que continua vigente o art. 9º da CLT, o qual estipula que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.

2. O acesso à justiça como direito

Para introduzir a análise sobre os temas processuais o ponto de partida é o mesmo, ou seja, a lembrança de que o termo de garantia da aprovação da reforma foi o de que não haveria eliminação de direitos dos trabalhadores.

Pois bem, o acesso à justiça é um direito fundamental da cidadania, que tem sede constitucional e nas declarações internacionais de Direitos Humanos, assim, a Lei 13.467/17 não pode impedi-lo.

As alterações nas regras processuais, propostas pela Lei 13.467/17, precisam ser compreendidas e aplicadas à luz da atual noção do direito de acesso à justiça como um direito fundamental, que é condição de possibilidade do próprio exercício dos direitos sociais. Esse é o referencial teórico que permitirá, também no âmbito processual, o uso das regras dessa legislação “contra ela mesma”, construindo racionalidade que preserve as peculiaridades do processo do trabalho e a proteção que o justifica.

Para isso, ainda que brevemente, precisamos resgatar o caminho até aqui trilhado pela doutrina, que determina esse reconhecimento de um direito fundamental à tutela jurisdicional.

No Estado liberal o acesso à justiça era concebido como um direito natural e como tal não requeria uma ação estatal para sua proteção. O Estado mantinha-se passivo, considerando que as partes estavam aptas a defender seus interesses adequadamente[ii]. Com o advento do Estado Social surge a noção de direitos sociais e, paralelamente, o reconhecimento de que uma ação efetiva do Estado seria necessária para garantir o implemento desses novos direitos. Por isso, o assunto pertinente ao acesso à justiça está diretamente ligado ao advento de um Estado preocupado em fazer valer direitos sociais, aparecendo como importante complemento, para que “as novas disposições não restassem letras mortas” [iii].

O movimento de acesso à justiça apresenta-se sob dois prismas: no primeiro ressalta-se a necessidade de repensar o próprio direito; no segundo preocupa-se com as reformas que precisam ser introduzidas no ordenamento jurídico, para a satisfação do novo direito, uma vez que pouco ou quase nada vale uma bela declaração de direitos sem remédios e mecanismos específicos que lhe deem efetividade.

Sob o primeiro prisma (denominado método de pensamento), o movimento é uma reação à noção do direito como conjunto de normas, estruturadas e hierarquizadas, cujo sentido e legitimidade somente se extraem da própria coerência do sistema. Na nova visão o direito se apresenta como resultado de um processo de socialização do Estado, e passa a refletir preocupações sociais, como as pertinentes à educação, ao trabalho, ao repouso, à saúde, à previdência, à assistência social, etc.

Sob o segundo prisma, o movimento se desenvolve em três direções, chamadas “as três ondas do movimento do acesso à justiça”.

CNTS

Deixe sua opinião

Enviando seu comentário...
Houve um erro ao publicar seu comentário, por favor, tente novamente.
Por favor, confirme que você não é um robô.
Robô detectado. O comentário não pôde ser enviado.
Obrigado por seu comentário. Sua mensagem foi enviada para aprovação e estará disponível em breve.

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *