Ante a calamidade do coronavírus, Bolsonaro ajuda empresas e fragiliza o trabalhador
Política
MP 927/2020 permite suspensão de contratos de trabalho por quatro meses, sem remuneração. O país pode ter, dentro de semanas, dezenas de milhões de brasileiros famintos e desesperados. Enquanto vários países aprovam medidas para direcionar recursos públicos para ajudar os cidadãos durante a crise, o governo brasileiro edita MP da morte e do caos.
Na contramão das medidas que vêm sendo anunciadas por países como Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Argentina, Venezuela e El Salvador de proteção da classe trabalhadora com a garantia de que os governos pagarão até 80% dos salários e suspenderão a cobrança de contas de água, luz, internet e aluguel durante a pandemia do coronavírus, o governo de Jair Bolsonaro decidiu deixar o trabalhador sem salário por até 120 dias.
Neste domingo, 22, o governo editou a Medida Provisória – MP 927/2020 que permite às empresas suspender o contrato de trabalho de seus funcionários por até quatro meses, sem remuneração. A MP que foi publicada em edição extra do Diário Oficial vale enquanto durar o período de calamidade pública, a partir da data da publicação.
Em suma, os empregadores poderão, de forma unilateral, determinar medidas emergenciais, como o teletrabalho, a concessão de férias coletivas, a antecipação de férias individuais, o aproveitamento e antecipação de feriados e o direcionamento do trabalhador para qualificação.
Fica suspensa, também, a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020. A medida dá força aos acordos individuais entre empregado e empregador. Eles ficam mais fortes do que as leis em geral, incluindo a CLT. O único limite que a MP traz é a Constituição.
O governo optou por acudir a empresa e não o trabalhador. A suspensão do contrato de trabalho neste momento livra as empresas dos custos da demissão e suspende o preço da manutenção da folha. É uma iniciativa voltada para a empresa.
A justificativa – “preservação do emprego e da renda” – carece de lógica uma vez que a proposta deixa os trabalhadores sem dinheiro durante o período de isolamento social por conta do coronavírus.
“A medida de Bolsonaro é criminosa! Atende somente os interesses dos empregadores e despreza qualquer participação dos sindicatos para a construção de uma solução adequada neste momento de crise. A meu ver qualquer iniciativa que tenha efetividade deve ser construída pela representação da sociedade civil juntamente com os governantes. Indo além, nesse tempo de pandemia, qual trabalhador tem quatro meses de poupança para sobreviver sem salário? Esta medida do governo Bolsonaro revela o abandono aos trabalhadores no momento em que eles mais precisam”, avalia o secretário-geral da CNTS, Valdirlei Castagna.
Trabalhadores da saúde – A MP 927/2020 permite aos estabelecimentos de saúde prorrogar a jornada de trabalho dos profissionais, mesmo para as atividades insalubres e para quem faz jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso. O texto também permite a adoção de escalas de horas suplementares entre a 13ª e a 24ª hora do intervalo interjornada.
As horas suplementares podem ser compensadas no prazo de 18 meses após o estado de calamidade pública por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra. Ainda de acordo com o texto, os casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Durante 180 dias, os auditores fiscais do Trabalho do Ministério da Economia só podem atuar “de maneira orientadora”. A aplicação de multas e penalidades só pode ocorrer se for constatado acidente de trabalho fatal; trabalho escravo ou infantil; falta de registro de empregado; ou situações de grave e iminente risco.
O secretário-geral da CNTS critica a medida e afirma que a Confederação lutará, inclusive na Justiça, para que os profissionais da saúde recebam toda proteção e segurança necessárias para o bom desempenho de suas funções. “Continuamos defendendo que existe obrigação do fornecimento de EPIs a todos os trabalhadores da área da saúde, independente do seu local de atividade, visto que neste momento os locais com maio probabilidade de contaminação é próximo aos estabelecimentos de saúde. Além disso, entendo que os profissionais infectados devem ser afastados do trabalho devendo ser encaminhado como acidente de trabalho, garantindo o tratamento por conta do empregador. A CNTS irá tomar medidas judiciais buscando essas garantias”, afirma Castagna.
Suspensão do contrato e FGTS – A MP permite a suspensão do contrato de trabalho, por até quatro meses, para que o empregado participe de programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador. A suspensão não depende de convenção coletiva e pode ser negociada diretamente com o trabalhador.
Durante a suspensão do contrato, o empregador pode conceder “ajuda compensatória mensal”, sem natureza salarial. O valor do benefício deve ser definido entre as partes por meio de negociação individual. Caso o curso de qualificação não ocorra, o empregado deve pagar imediatamente os salários e encargos sociais referentes ao período.
A MP 927/2020 também dispensa os empregadores de recolher o FGTS com vencimento em abril, maio e junho. A medida vale independente do número de empregados; do regime de tributação; da natureza jurídica; do ramo de atividade econômica; e de adesão prévia. O valor devido poderá ser pago, sem atualização, multas ou encargos, em até seis parcelas mensais.
Férias individuais e coletivas – O empregador também pode optar por antecipar as férias do trabalhador, que deve ser comunicado com pelo menos 48 horas de antecedência. As férias devem ser superiores a cinco dias e podem ser concedidas mesmo que o período aquisitivo não esteja completo.
As duas partes podem inclusive negociar a antecipação de férias de períodos futuros, e a prioridade deve ser para funcionários que pertençam ao grupo de risco do coronavírus. No caso dos profissionais de saúde, o empregador pode suspender férias ou licenças não remuneradas.
A medida provisória também autoriza o adiamento do pagamento do adicional de um terço de férias para o dia 20 de dezembro. Pela regra anterior, o beneficio deveria ser depositado até dois dias antes do início das férias. Durante o estado de calamidade, as empresas ficam desobrigadas de respeitar limites definidos pela CLT, que só autoriza a ocorrência das férias coletivas em dois períodos anuais, nenhum deles inferior a dez dias corridos. A MP 927/2020 também dispensa a comunicação prévia ao Ministério da Economia e aos sindicatos da categoria profissional.
De acordo com a Contatos Assessoria Jurídica, é flagrante a inconstitucionalidade da MP 927 ao afrontar o artigo 8º da Constituição Federal. A medida desconsidera a importância da definição de soluções coletivas para problemas comuns para os trabalhadores, causada principalmente pelo afastamento da participação dos sindicatos na defesa dos trabalhadores.
Segundo a MP 927/2020, empregado e empregador podem celebrar acordo individual escrito para garantir a permanência do vínculo empregatício. De acordo com o texto, o contratante pode alterar o regime de trabalho presencial para teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância, em que os funcionários prestam serviços por meio de tecnologias da informação e comunicação.
Caso o empregado não disponha da infraestrutura necessária para o teletrabalho, o empregador pode fornecer os equipamentos e pagar por serviços como conexão à internet, por exemplo. Mas isso não pode ser caracterizado como verba de natureza salarial.
O jornalista Leonardo Sakamoto lembra que “outros países mais avessos a investimento público que o nosso, estão garantindo uma remuneração decente para que trabalhadores formais e informais fiquem tranquilos em isolamento em suas casas. No Brasil, O Estado legitima a violência e prioriza o lucro, em detrimento da vida, em um nível até então desconhecido do ponto de vista da regulação do trabalho no país”. Ele ainda questiona: “em algum momento, a vida da população importou para este governo?”.